PARTE 1 < AQUI
A primeira coisa que ela
viu foi um bando de pássaros sobrevoando as copas das árvores. Era dia na
floresta e ela estava sozinha.
Olívia sentou
lentamente, surpresa com as lágrimas que rolavam de seu rosto.
Pesadelo?
Era como se sentia, mas
então como tinha dormido ali? Onde estava Ezequiel? Que lembranças terríveis
eram aquelas?
Risadas demoníacas no
escuro; Charlie perseguindo-os ensandecido; E por último... A imagem de seu filho baleado morrendo em seus
braços.
Não queria acreditar em
sua memória. Se os eventos fossem reais, Ezequiel desaparecera enquanto ela
estava desmaiada, levado pela coisa na floresta.
Ela levantou e se pôs
correr. Seu coração palpitava.
Não podia ser real...
Não podia... Mas o pesadelo era a única explicação que tinha para estar ali.
Ela e Ezequiel tinham saído para procurar o filho, e agora ela retornava
sozinha. Sua família inteira roubada sem explicação.
O vazio que já existia
nela começou a aumentar, e tudo que ela podia fazer era preenchê-lo com dor.
Sem eles não havia motivo algum para continuar vivendo.
A grande incerteza sobre
o que realmente tinha acontecido diminuía seus sentidos e empregava velocidade
às pernas. Correu sem direção, gritando o mais alto que podia.
- DEVOLVA! DEVOLVA ELES!
Dez minutos depois, encontrou
uma trilha, e logo depois os tocos das árvores que Ezequiel derrubara
recentemente. Ela estava chegando em seu lar.
Poderei
chamar de lar um lugar sem vida? Pensou.
Seguindo a trilha,
chegou à base da colina que residia. As árvores ali eram mais escassas, abrindo
espaço para a grama. Olívia subiu a inclinação ansiosa, tanto para chegar em
casa quanto para sair daquela floresta maldita.
Chegando na borda,
precisou se apoiar em um tronco para respirar. Logo à sua frente começava a
plantação de cana da família, cada pé com quase dois metros de altura. O
caminho prosseguia entre as plantas até o topo da colina.
De repente algo lhe
chama a atenção. Um fio de fumaça se desenrolando no horizonte. Exatamente onde
estava a...
Porém mal teve tempo de
se alegrar, e um vento gélido e paralisante a atingiu por trás. Trazia com ele
os sussurros guturais da criatura.
-
Você pode tê-los...
O demônio falava com
ela. Era como se estivesse ao seu lado prestes a colocar a mão em seu ombro.
- Por enquanto... Aproveite...
Num instante, Olívia
corria disparada no canavial. Ela cerrou os dentes e chorou novamente, odiando
com todas as forças aquela coisa medonha e inexplicável. Odiava a sensação de
impotência que lhe causava. Mas a odiava ainda mais pelo constante deboche em
sua voz.
O que diabos ele queria
dizer com aquilo?
Ezequiel a esperava na
varanda, sentado na cadeira de balanço com o rifle ao lado do corpo. Quando a
viu, levantou e ergueu os dois braços pro alto, comemorando.
- EU SABIA! EU SABIA! –
Gritou, e correu de encontro.
Venceram os últimos
metros e ela se entregou aos braços fortes de seu marido, que passou a beijá-la
e repetir que sabia que ela voltaria.
- Venha ver o Michael!
- Ele está mesmo aqui?
Então o menino apareceu
de trás da casa. Correndo e saltando em sua direção.
- MÃE!
Olívia estava boba de
emoção. Abraçou ambos e chorou por um bom tempo. Michael não parecia diferente
em nada. Continuava o garoto sorridente e carinhoso de sempre.
- Ezequiel... o que
aconteceu? Quando foi que ele voltou? E você... eu pensei que você tinha
desaparecido depois que eu...
Ele ficou sério, depois
disse para Michael ir colocar mais madeira na lareira. Quando o menino se
afastou, ele começou a andar e ela o seguiu.
- Michael reapareceu
cinco dias atrás, no sétimo dia desde o sumiço.
- Mas isso é impossível!
Ontem mesmo procurávamos por ele!
- Quando ele me viu me
contou como tinha entrado na floresta, no dia anterior, e se perdido... Michael
não fazia ideia que tinha sumido por sete dias. Só ficava repetindo que estava
voando com um dragão azul.
Ezequiel parou em frente
à uma pequena cruz enfiada no chão. Era a sepultura improvisada de Charlie.
Algumas gramíneas já apareciam na terra recém revirada.
- Todos os desaparecidos
estão retornando no sétimo dia. Ninguém sabe explicar o que aconteceu... Na
verdade nem tentam; só ficam contando os sonhos que tiveram.
- Eu fiquei naquele lugar, com aquela coisa, por uma semana?
Ele fez que sim.
Olívia estava tremendo.
- O que ele fez
comigo... O que ele fez...
Ezequiel a abraçou.
- Calma... Você está
bem... Estamos bem.
Ela se livrou do abraço,
retomou o controle e o encarou.
- O que vamos fazer?
- Bem...
- Temos que mata-lo
antes que as coisas piorem... Amanhã juntaremos os homens dispostos e...
- Caçamos ele? Você tem
noção do que está dizendo? Não há como lutar com aquilo.
- Então vamos ser todos
brinquedos do demônio? Vamos simplesmente fingir que nada disso aconteceu?
Ezequiel apenas balançou
a cabeça.
Será que ele não percebe o quanto
estamos ameaçados?
Por mais difícil que
fosse, ela lembrou de seu último contato com a criatura:
- O demônio falou
comigo... Quando eu estava chegando, ele disse que... disse que eu poderia
aproveitar... por enquanto.
- Aproveitar o que?
- Vocês dois.
Um clima pesado pairou
sobre eles e ninguém conseguiu dizer mais nada. Olívia passou o resto do dia brincando
com Michael, e quando chegou a hora de ir, dormiram todos na mesma cama.
Na manhã seguinte, os
três se acomodaram na picape e rumaram para a cidade. Ezequiel se mantinha carrancudo
e pensativo.
- Mãe... podemos ter
outro cachorro?
- Claro que sim, filho.
Só precisamos achar um.
- Ninguém mais na cidade
viu ele – disse Ezequiel de repente, – só eu.
- Um cachorro? –
Perguntou Michael, inocente.
- E não quero ver de
novo...
- Pelo menos me diga que
vamos à polícia.
- O delegado...? Você
vai ter que ir sozinha. Vou resolver outras coisas.
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A cidade possuía pouco
mais de três mil habitantes, mas pela movimentação nas ruas até parecia ter
mais. Haviam pessoas reunidas em cada loja e cada esquina. Todos os carros da
cidade tinham decidido aparecer nas vias principais.
- Vou abastecer e comprar
o necessário para a colheita – disse ele ao estacionar. – Pode ir falar com o
delegado se precisa mesmo, mas faça as compras da semana. Michael, vá com sua
mãe.
Olívia deu um beijo em
Ezequiel e desceu do veículo. Por algum motivo seu olhar acompanhou a picape
até a perder de vista.
Foram primeiro a feira.
O marido e o filho com certeza não tinham se alimentado direito durante o tempo
que esteve desaparecida, então ela estava decidida a caprichar na cozinha.
Estava escolhendo
batatas, decidindo entre duas receitas, quando um coro de gargalhadas chamou
sua atenção. Três mulheres acompanhadas de uma criança se aproximavam. Pareciam
bem animadas. Olívia conhecia duas de vista, e a do centro era sua amiga,
Maria.
- Oi sumida! Tá tudo bem contigo?
- Sumida?
- Foi a Helen que
começou a dizer isso. – Respondeu ela indicando a loira ao seu lado; uma das
primeiras mulheres a desaparecer. – Não é legal!? Somos todas sumidas.
O
comentário foi seguido de risadas.
-
Como foi o seu sonho? – Perguntou Maria.
Olívia
ficou muda olhando para as cinco mulheres. Estavam vidradas nela, ansiosas por
seu relato onírico. Pelo canto do olho viu Michael correndo em círculos de
braços abertos; contava seu sonho para o filho de Maria.
-
Eu... sonhei com um rio...
-
Um rio... e? – Insistiu ela
Olívia
se sentia desconcertada com a atitude das mulheres naquela situação.
-
Eu esqueci... Esqueci... Escuta, vocês não estão preocupadas com isso? Não
sabemos o que está acontecendo!
No
mesmo instante toda a animação do grupo desmoronou. As mulheres começaram a conversar
entre si e evitar olhar em seus olhos. Maria pegou em seu ombro e a afastou das
outras para conversarem a sós.
-
Olívia... Michael voltou. Você não está feliz?
-
É claro que estou feliz mas...
-
Mas o que?
-
Maria, você não sente... esse mal?
-
Eu não sei...
-
Seu filho Nicolas não desapareceu ainda, certo? E se ele for o próximo?
Agora
era Maria se sentindo desconfortável. Ela levantou o queixo e disse:
-
Todos voltam. Sem exceção. Amanhã o marido de Helen vai voltar. Você não tem o direito de deixa-la preocupada... Sabe, eu
sonhei que cavalgava num campo repleto de flores e animais lindos. Um lugar
perfeito e sem fim. Poderia ficar lá pra sempre. Só de lembrar já me sinto
melhor... Todos estão bem Olívia, não estrague a felicidade dos outros com a
sua paranoia.
Maria
virou as costas e seguiu pela calçada com suas amigas. Não demorou muito
estavam gargalhando novamente.
Minha paranoia?
Uma
ideia terrível acabava de lhe ocorrer.
E
se ela fosse a única pessoa preocupada em toda a cidade?
E
se ninguém fizesse algo a respeito dos desaparecimentos?
E
se a tratassem como louca?
O
pensamento em si já era assustador. Se provado real, ela achava que sua
sanidade estaria realmente ameaçada.
Olívia
pegou a mão de Michael decidida a descobrir o que seria feito para impedir mais
pessoas de desaparecer. Precisava falar com o delegado.
No
caminho, analisou cada rosto que encontrava em busca de algum sinal de medo ou
desconforto. Infelizmente, ela nunca tinha visto aquela gente tão feliz e
despreocupada.
Dona
Amélia, senhora acostumada a comentar a vida alheia, a chamou da janela de sua
casa.
-
Olívia, fiquei sabendo que também estava desaparecida. Como foi?
A
pergunta fora feita com bom humor e descontração, e a ajudou a relaxar um pouco.
-
Estou ótima. Obrigada Dona Amélia.
-
Teve um desses... sonhos fantásticos?
Ela
respondeu com outra pergunta.
-
A senhora não fica desconfiada sabendo que tem uma coisa na floresta pegando as
pessoas?
Amélia não perdeu o sorriso.
- Bom... eu não digo isso a todos, mas
já que você perguntou... ele me parece algum tipo de espírito brincalhão. Um
pregador de peças, entende? Não acho que queira nosso mal.
Só
me faltava essa.
- Quem me dera ter um sonho bonito –
continuou Amélia, suspirando. – Há tempos que não tenho uma aventura enquanto
durmo.
- Eu sonhei que estava voando! – Disse
Michael, fazendo a senhora rir.
- Mas que sorte a sua!
- Passar bem – disse Olívia com um
sorriso forçado, e continuou seu caminho.
Poucos minutos depois ela subiu os
degraus em frente à delegacia e entrou. Um jovem que datilografava em uma mesa
nos fundos parou de escrever para atende-la.
- Sim?
No balcão de atendimento ela se
apoiou, Michael tentava ver alguma coisa ficando na ponta dos pés.
- O delegado, por favor.
-
Senhor Gomes! – gritou o jovem para o outro lado das dependências, onde ficava
o cubículo do delegado.
Gomes
saiu de sua saleta.
-
Olívia, há quanto tempo não te vejo. Como vão as coisas na fazenda?
Tudo
na frase e na expressão de Gomes indicava que ele seria mais uma decepção. Ela
começava a perder a paciência com aquela baboseira.
-
Delegado, o que a cidade está fazendo para evitar mais desaparecimentos?
-
Nossa! Você parece até uma jornalista. Nunca te vi dessa maneira. Tem algo te
perturbando?
-
Mas é claro! Como você pode fingir que tá tudo normal? As pessoas estão sumindo
todos os dias!
O
sorriso de Gomes murchou até se tornar uma carranca de tédio.
-
Nenhuma ficou desaparecida por mais de sete dias.
-
E o que isso significa?
-
Significa que eu não vou deixar você espalhar medo e confusão desnecessária
pela cidade.
-
Está dizendo que vai me prender?
-
Não estou dizendo que não vou.
Eles
se encararam até Olívia abaixar a cabeça e fazer um carinho em Michael. Por algum
motivo tinha um nó na garganta.
-
Por favor... Nós vimos ele...
Ezequiel o viu, eu só escutei sua risada... Delegado, aquela coisa na floresta
é má! Muito má!
Gomes
olhou de esguelha para o jovem datilografando e chegou mais perto de Olívia.
-
Se quer mesmo saber – sussurrou, - pergunte ao seu marido. Ele é um dos poucos
que ouviu meu relato. Agora saia da minha delegacia, está deixando o meu dia
infeliz.
A cidade enlouqueceu. Pensou ela, sentando ao lado de
Michael nas escadas da entrada.
Ezequiel
parou do outro lado da rua e desceu da picape. Ele chamou Michael primeiro e o
colocou na cabine, disse-lhe algo, depois andou até Olívia. Tinha uma expressão
que a deixou preocupada.
-
O que aconteceu? – Perguntou ela.
-
É o velho Arnaldo. Não queria saber de conversa; vai atrás da esposa depois do
almoço.
Arnaldo
e sua esposa Roberta eram os donos da loja de ferragens da região e amigos de
longa data do casal. Ambos tinham mais de cinquenta anos.
Apesar
de ela se preocupar com a segurança de Arnaldo, era ótimo saber que alguém
ainda se importava com uma pessoa desaparecida
-
Ele vai sozinho?! Temos que ajuda-lo!
-
Não! Não podemos enfrentar aquela coisa!
-
Então você vai simplesmente deixar o demônio pegar ele?
Ezequiel
cerrou os dentes e resmungou algo que soou como um rosnado.
-
Se nós não formos, ninguém vai! É como se a cidade inteira estivesse dormindo!
-
E se nós morrermos, Olívia?! E o Michael? Eu não ligo para o que vai acontecer
com esta cidade! Nós três precisamos ficar juntos!
A
pior parte de escutar aquelas palavras era saber que não poderiam estar mais
certas. Ela daria qualquer coisa para viver normalmente com sua família, mas
sabia que isso não seria possível enquanto o demônio habitasse a floresta.
Por enquanto... Aproveite...
-
Não estamos mais seguros! Se não o matarmos... algo terrível vai acontecer!
Ezequiel
permaneceu quieto, lutando com seus sentimentos. Olívia o abraçou.
-
Dessa vez estaremos preparados.
Eles
voltaram para casa em meio ao silêncio.
Durante
o almoço, Michael devorou tudo que colocaram em seu prato. Estava feliz como
garotos da idade dele devem ser. Quando o menino disse que estava com saudade
daquela comida, Olívia teve que esconder as lágrimas. Olhou para Ezequiel, mas
este tinha o olhar perdido e distante; mastigando de maneira mecânica e
inexpressiva.
Eles
pegaram o rifle e duas lanternas e partiram. Quando alcançaram a cidade,
Ezequiel passou direto, por dois quilômetros, e entrou na fazenda onde Maria
morava com os pais e seu filho Nicolas.
-
Vamos pra casa do Nicolas?! – Perguntou Michael, animado. É claro que já sabia
a resposta. Visitava a casa de seu amigo quase toda semana.
Ezequiel
parou a picape em frente à varanda e buzinou.
Olívia
pegou Michael pelo rosto.
-
Voltaremos antes do anoitecer, ok?
-
Onde vocês vão?
-
Nós...
Ezequiel
a interrompeu de repente:
-
Vamos à outra cidade, filho. Você quer alguma coisa... ? Um filhote! Vou te
trazer um cachorrinho!
-
Sério, pai?! Que demais! Obrigado!
Por que isso agora?
Michael
lhe deu um beijo e correu para a varanda, onde já se encontrava a família de
Maria reunida.
-
Ei! Venham tomar uma gelada! – Gritou o pai de Maria
-
Fica pra próxima! – Respondeu Ezequiel, acenando.
-
Até mais tarde! – Disse Olívia também acenando, enquanto o carro acelerava.
O
que ela viu então, nunca mais sairia de sua mente. A família de Maria toda
estava acenando e sorrindo, grotescamente. Suas bocas se abriam além do
humanamente possível, mostrando as gengivas; e seus olhos estavam mortos, mas
cheios de malícia... e algo mais. Até mesmo Michael parecia um pequeno
assassino...
A
picape fez curva, deixando a família de monstros atrás de uma árvore e além de
sua vista. Olívia engoliu em seco e se ajeitou no assento. Estava pálida como
leite.
-
Eu só falei aquilo pra ver ele sorrindo – Disse Ezequiel.
Ah! Mas você não viu o sorriso que eu
vi!
Será
que o demônio estava mexendo com sua cabeça? Fazendo-a ver coisas?
Se
aquilo havia sido um truque, tinha funcionado perfeitamente. Sim, aquela visão
era claramente uma forma de diminuir sua coragem. O maldito estava debochando deles.
Na
cidade, o movimento diminuíra pela metade; após o almoço todos se retiravam
para suas residências. Quando passaram em frente à delegacia, Olívia lembrou de
algo que já devia ter perguntado:
-
O delegado te contou o sonho dele, não foi?
-
É verdade – respondeu ele. – Aquele cara tá perdido.
-
Como assim?
-
Eu vou contar tudo. O Arnaldo também precisa ouvir isso.
Eles
encontraram Arnaldo ao lado da loja de Ferragens, que também era a casa que
dividia com a esposa. Estava sentado em um banco feito de tronco, de onde podia
observar parte da floresta. O velho parecia bem abatido, mas demonstrou energia
ao levantar e recebe-los.
- Zeca! Decidiu ajudar esse velho? Ah!
Você trouxe Olívia para tentar me convencer, não é? Não adianta! Ninguém vai
fazer nada! Pois eu vou atrás dela!
- Vamos todos juntos – disse Olívia. –
Mas primeiro você precisa entender com o que estamos lidando.
Arnaldo pôs as mãos na cintura e os
encarou.
- O que vocês sabem?
- É melhor o senhor se sentar.
Então Olívia lhe contou a experiência
que tiveram com a criatura, terminando com a ameaça sussurrada em seu ouvido.
O velho só conseguiu ficar de boca
aberta, escutando.
- Um demônio?! Não dá pra acreditar!
Como se parecia, Zeca?
Ezequiel fechou a cara e bufou. Odiava
ter que falar sobre isso; tanto que Olívia ainda tinha essa curiosidade.
- E isso importa?! Era azul, tá bom?!
E tinha chifres! A minha preocupação não é o quanto ele é feio, e sim o que
pode fazer com a nossa cabeça!
Aquilo lhe lembrou o rio azul que vira
na floresta. Como ela tinha sido facilmente hipnotizada pelas ilusões brilhantes
do demônio.
Ezequiel parecia ter adivinhado seu
pensamento.
- Sim, você viu um maldito rio! Isso
não é nada! Nada comparado ao que o demônio fez com o delegado.
A sentença pesou sobre o grupo com seu
terrível agouro.
O mal tinha corrompido a justiça.
- Quando foi pego, Gomes sonhou com
seu falecido irmão. No sonho, o irmão dele o levava para um passeio na nossa
cidade... Só que... dez anos no futuro.
- O que tem o futuro? – Perguntou
Arnaldo.
- A cidade que Gomes viu era próspera;
cheia de gente e de comércio. Prédios pra todos os lados. Ele disse que parecia
uma metrópole. Seu irmão lhe contou que a presença na floresta é boa; que é um
guia para tornar a cidade rica!
Olívia levantou para não se tremer de
raiva. Agora entendia um pouco os métodos do monstro.
- Então é por isso que ele não faz
nada. O delegado caiu direitinho...
- Agora faz sentido... – disse
Arnaldo. – Pobre Roberta, foi enganada!
Eles o esperaram continuar:
- Na noite que ela sumiu... Estava
cantando e pulando em direção à floresta. Ela levantou no meio da noite e saiu
correndo de camisola! Não pude alcança-la! Esse demônio a enfeitiçou!
- É sobre isso que eu quero falar –
disse Ezequiel. – A criatura que vamos enfrentar pode nos fazer acreditar em
qualquer coisa! Como vamos confiar uns nos outros?
- Nossa única vantagem é saber que haverá
ilusões. Não seremos enganados tão facilmente dessa vez – disse Olívia.
Arnaldo bateu nas pernas e levantou,
como se encerrasse o assunto.
- Não será nossa única vantagem.
Venham aqui, vamos nos armar.
Eles o seguiram para dentro de sua
loja, onde incontáveis ferramentas estavam dispostas.
- Escolham – disse ele, indo procurar
algo nos fundos.
Sem demora, Ezequiel tirou um machado
da parede e o examinou. Formava uma boa dupla com o rifle.
Olívia procurou entre as ferramentas em
busca da arma perfeita. E depois de revirar pás, picaretas e rastelos, acabou
optando pela foice longa. Com ela podia atacar a uma distância relativamente
segura, e seus anos batendo pasto com certeza lhe ajudariam a manuseá-la.
Arnaldo voltou com seu rifle e uma
bolsa grande que Olívia não conseguiu identificar o que era. Tinha braço,
parecendo um estranho violão.
Ezequiel assobiou quando viu o volume
e trocou olhares com o velho.
- Alguém quer me dizer o que é isso? –
Perguntou Olívia.
- É uma motosserra – respondeu Ezequiel.
Quando as armas foram reunidas na
parte de trás da picape, todos ficaram em silêncio por um tempo. Naqueles instantes
eles sentiram toda a intensidade do que estavam prestes a fazer, e souberam que
não havia mais volta.
Então saíram à caça. A caça ao
demônio.
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