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26/03/2020

O Djinn - Parte 3




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- Todos os cães estão nos encarando... – disse Olívia. Ela vinha percebendo isso desde que eles saíram da loja de Arnaldo. Era o segundo grupo de vira-latas a parar completamente o que estava fazendo e acompanhar a passagem da picape com a cabeça.
- Quê? Cães? – Perguntou Arnaldo, abrindo os olhos e encerrando a prece que fazia. Suas mãos cruzadas sobre o cano do rifle entre suas pernas.
- Cavalos – disse Ezequiel apontando mais a frente para um terreno cercado onde alguns equinos eram vendidos. O vendedor tentava sem sucesso impedir um cavalo jovem e excitado de montar em uma de suas éguas. Estavam quase na frente da cerca quando o garanhão se equilibrou sobre a fêmea e a penetrou. Então o movimento parou de uma vez. Suas longas cabeças se viraram juntas para a picape e passaram a segui-la. A posição do coito congelada.
Os três não puderam evitar olhar de volta. No fundo daqueles globos pretos e acusadores. Como se não fossem eles os safados.
Cinco segundos depois Arnaldo procurava mais animais por onde passavam. Estava pálido.
- EI, EI, EI! Isso é coisa dele não é? Aconteceu com o cachorro de vocês. E esses bichos... como...
Olívia abriu a boca para falar, mas Ezequiel disse exatamente o que ela pensava.
- Ele sabe. Vamos ter problemas com os animais.
Ele sabe. E sem querer Olívia já revivia mais uma vez a despedida em frente à casa de Maria. E não parece ter medo de nós. Talvez até nos ache engraçados.
- Ele sabe de que? – Perguntou o velho.
Ezequiel balançou a cabeça.
- O que ele não sabe...
- Mas que merda! Fale direito!
- Já chega! – Gritou ela. – Devíamos estar discutindo como vamos encontra-lo!
O carro saiu da cidade e as casas deram lugar às plantações. Soja e cana-de-açúcar apareciam regularmente, mas era o café o forte da região. As fileiras de arbustos cafeeiros se estendiam por uns dois quilômetros, até onde a floresta começava. Não importava em que direção olhava, ela sempre estava lá dominando o horizonte. O reino da criatura.
O demônio podia estar em qualquer lugar e em lugar nenhum.
- Eu tive uma ideia – disse Ezequiel, quebrando um longo silêncio que fedia a cérebro queimado. – Não é excelente, mas é um começo.
- O que vamos fazer?
- Da floresta inteira, ele deve ter escolhido o local de mais difícil acesso. Minha ideia é subir e ver as coisas de cima. Só então decidir o próximo passo.
Arnaldo franziu o cenho. Olívia pôde ouvi-lo respirar pesado.
- Você não está pensando em subir a serra, está? Quer observar a droga da paisagem enquanto um demônio faz o que quiser com a minha mulher?! Não temos escolha, temos que entrar logo nessa mata e enfrentar o que quer que seja!
Ezequiel lhe deu um sorriso torto em resposta e desacelerou a picape. Parando em seguida.
- Quer tanto morrer, velho? Acha que não vamos conseguir?
- Por que paramos? – Perguntou Olívia.
Ele piscou para ela, abriu a porta e se afastou alguns passos. Arnaldo desceu do veículo soltando um palavrão e outro e o seguiu. Logo estavam amaldiçoando um ao outro e urinando na beira da estrada.
Olívia relaxou. Por um momento pensara que os dois iriam se desentender. Tinha se esquecido do quanto àqueles homens discutiam.
Ela olhou para o céu e se perguntou quantas horas eles tinham até o anoitecer.
Ezequiel e Arnaldo voltavam para o carro quando o rebanho apareceu, bloqueando a estrada quase um quilômetro à frente. Havia algo entre vinte e trinta bovinos, e nenhum possuía intenções assassinas. Com certeza estavam apenas sendo transferidos de uma fazenda à outra.
A quem ela estava enganando?
- Ezequiel! – Gritou ela, mas ele já estava subindo na caçamba e gritando ordens.
- Dirija! Vamos ter que passar no meio dessas vacas! Cadê teu rifle, velho?!
Arnaldo rebolou ao redor do carro o mais rápido que pôde e pegou sua arma pela janela. Usou o braço de Ezequiel para subir na traseira.
Olívia fez a picape andar. As armas foram apoiadas no teto.
Ressoou o primeiro disparo. Uma vaca tremeu e sentou nas ancas. Ela ouviu o ferrolho sendo puxado e o cartucho vazio caiu sobre o capô. O rebanho continuou andando normalmente.
- Quando chegar perto pare o carro! Precisamos de tempo para atirar nelas!
Ela imaginou que outro carro poderia chegar logo, e então as pessoas tentariam entender o que estava acontecendo. Talvez realmente entendessem e os ajudassem...
Outro disparo. Dessa vez um animal foi ao chão, no que foi pisoteado e deixado para trás.
Olívia olhou pelo retrovisor com uma ponta de esperança...
... e percebeu que não tinham tempo de parar o carro.
- OS CAVALOS ESTÃO VINDO! – Gritou.
Arnaldo imediatamente xingou suas mães equinas.
- Ainda estão longe – gritou Ezequiel. – Se concentre nas vacas!
A parede viva foi crescendo na direção deles e a picape avançou atirando. Faltavam quinhentos metros, e Olívia sentia cada vez mais dificuldade em regular o pé do acelerador. Se pisasse fundo destruiria o carro em toneladas de carne e arremessaria os homens longe. Se não o fizesse, logo estariam cercados.
Faltando trezentos metros, começou a reduzir bastante a velocidade. Após nove ou dez vacas abatidas o bloqueio parecia apenas um pouco menor. Percebeu com desespero que sua maior preocupação se tornaria realidade muito breve; era inevitável que os cavalos os alcançassem.
Pelo retrovisor viu dois deles chegando depressa e um terceiro bem mais atrás, sendo atrasado por uma carroça que puxava. Os cascos eram audíveis, estalando no asfalto. Ezequiel e Arnaldo se ocupavam em munir os rifles.
- SAIAM DA FRENTE VACAS MALDITAS!
Arnaldo recomeçou a disparar quando estavam a duzentos metros dos bovinos. Ezequiel deixou seu rifle carregado para ele e pegou o machado. Ele o balançava quando o primeiro cavalo os alcançou.
Pelo retrovisor Olívia acompanhou cada segundo de tensão.
O garanhão surgiu com seu trote frenético, lançando os enormes dentes sobre seu marido. Ezequiel errou o primeiro golpe e atingiu a picape de raspão. O cavalo mordeu sua barriga e puxou. Ezequiel apoiou os pés na beirada para não cair, agarrou uma orelha do animal, e desferiu um golpe violento na em sua nuca, fazendo-o desabar em uma cambalhota. Morto.
Quando ele se virou ela percebeu que por sorte sua barriga estava intacta sob a camisa rasgada. O rosto dele porém não denotava alívio.
- HÁ CACHORROS NA CARROÇA! PASSE POR CIMA DESSAS VACAS!
Eram menos de cem metros até as vacas, mas quando ela pisou no acelerador, alguma coisa bateu na lateral direita do carro com um estrondo, fazendo as rodas de trás deslizarem e diminuindo bastante velocidade em que estavam. Num relance Olívia viu as pernas de Arnaldo passando por cima da beirada, e freou, deixando-o caído no asfalto dez metros atrás.
Após ter dado um coice na picape que derrubou Arnaldo, o segundo cavalo já estava sobre ele, prestes a pisoteá-lo no chão. Ezequiel saltou sobre a beirada com o machado levantado e o acertou nos quadris. O animal relinchou e coiceou de volta, arremessando o machado para longe de suas mãos. Arnaldo tinha caiu junto com seu rifle, e com um tiro desesperado estourou a cabeça do bicho.
Olívia esperou que retornassem e acompanhou a aproximação dos animais. As vacas haviam começado a trotar, e tinham pouquíssimo tempo antes da carroça com seus passageiros caninos os alcançarem.
Enquanto eles se jogavam na picape, ela percebeu que Ezequiel segurava a mão esquerda junto ao corpo. Já Arnaldo tinha o cabelo branco de algodão empapado de sangue, que escorria pela testa.
- VAI! VAI! VAI! – Gritaram os dois.
Os pneus cantaram. As vacas perceberam a aproximação, e abaixaram as frontes como touros. Aquelas malditas testas ossudas conseguiriam pará-los? Era muito difícil o carro passar por cima daquilo, mas valeria a pena se algumas morressem.
Humanos e animais se prepararam para o impacto.
A primeira coisa que sentiu foi o estrondo seguido por uma intensa trituração de ossos, conforme o para-choque avançava sobre três das vacas. No instante seguinte seu corpo deslizou do assento e seu rosto foi de encontro ao volante. Desnorteada e com a boca sangrando, ainda teve tempo de pensar em como fora burra de esquecer o cinto de segurança, então notou a carroceria chacoalhando e algo como uma guerra começar na parte de trás.
Ezequiel e Arnaldo rugiam, distribuindo morte para as vacas que os atacavam dos dois lados. Alguém tinha que lidar com a carroça cheia de cães. Estava prestes a abrir a porta quando uma mandíbula selvagem atravessou o vão da janela e se fechou a centímetros de sua bochecha. Ensandecida, a vaca continuou tentando alcança-la, e no centro de seus olhos ela viu duas estrelas azuis, até que uma pesada lâmina rachou o topo de seu crânio, esguichando sangue dentro da cabine e sobre Olívia. As estrelas morreram. O animal revirou os olhos e escorregou com a língua para fora, bloqueando a porta com seu corpo.
Olívia subiu na janela e se jogou na caçamba, caindo de joelhos sobre uma profusão de sangue e munições espalhadas. Tinha poucos segundos. Pegou o rifle que encontrou e percebeu seu ferrolho puxado e a câmera vazia. Era o de Arnaldo. Tremendo enfiou um cartucho nele e engatilhou. E como não havia tempo, apenas levantou e disparou. Ela atingiu o peito do cavalo, que bufou e continuou avançando, desgovernado. Pelo menos ela o tirara dos trilhos.
Livrou-se do rifle e pegou sua foice. Umas cinco ou seis vacas ainda eram rechaçadas enquanto tentavam subir na picape. Ela estava pronta para ceifar alguma coisa quando o cavalo chegou como um trem e bateu em cheio na traseira, quase derrubando todos. Três cães passaram voando por cima deles e caíram após o carro, enquanto um quarto rodopiou baixo e atingiu a parte de trás da cabine, caindo entre os homens.
Gritando, Olívia desenhou um arco vertical com sua foice que pregou o cão na lataria. O animal morreu quando a lâmina foi arrancada de seu torço. Subiu então no teto da picape, onde achou que lutaria melhor contra os cães, e balançou sua longa arma em preparação.
Foi o tempo dos cães restantes se levantarem e atacarem, saltando sobre as vacas mortas e subindo no capô em uma velocidade absurda. Olívia desferiu um golpe lateral que empalou o cachorro mais próximo, mas permitiu aos outros dois saltarem juntos sobre ela. Com o cabo da foice bloqueou uma mordida que arrancaria suas tripas, mas o terceiro cão conseguiu cravar os dentes em sua perna, logo acima do calcanhar, e puxou.
Caiu de costas no teto, sentindo o baque tirar o ar de seus pulmões. Sua foice voou de sua mão com um cão empalado na lâmina e outro abocanhando o cabo. O outro a arrastou para o capô, onde ela se segurou e começou a chuta-lo. Aquela malditas presas se recusavam a soltar sua carne.
Pelo canto do olho viu Ezequiel matar a última vaca do seu lado e se preparar para salvá-la. Porém hesitou com Arnaldo gritando de dor.
- TIRE ELE DE MIM!
Ezequiel jogou um rifle para ela por cima do teto e foi ajudar o velho. Ela teve que soltar o capô e pegar a arma, sendo então arrastada para o chão sobre as vacas mortas. Ela se deixou levar e empurrou o cano da arma pelo canto da boca do cachorro. Disparou com vontade, fundo em sua garganta, espalhando-o pela estrada. Ela ouviu o lamento do último cão, que atacara o velho. Seus ganidos de dor eram entrecortados por rosnados, até que a lâmina do machado encerrou aquilo também.
Estava acabado.
Ela deitou a cabeça em uma perna bovina e fechou os olhos. Nos segundos que se seguiram tentou apenas respirar, mas outras sensações vieram; como o calor de seus ferimentos e o cheiro pungente de sangue no vento.
Ezequiel ajudou-a a se erguer. Ela olhou em volta para quase meia centena de corpos espalhados na estrada e se sentiu horrível. Ela amava os animais. Especialmente as vacas, sempre tão neutras e pacíficas.
Agora estavam todos cansados e machucados. Arnaldo batera a cabeça e fora mordido no braço, Ezequiel quebrara toda a mão esquerda ao levar um coice e ela só conseguia andar mancando, e com muita dor. Era de se esperar que desistissem... mas não existia tal opção. O demônio sabia das intenções deles. Não havia lugar seguro para o grupo.
Com dificuldade arrastaram algumas vacas do meio da pista (os três juntos para cada corpo) e seguiram viagem. Arnaldo ao volante. Todos permaneceram calados com suas dores e pensamentos.
Quinze minutos se passaram. A estrada se tornou mais inclinada e fez uma curva acentuada para a esquerda.
Agora estavam realmente subindo.
O caminho da serra, além de muitas curvas, possuía árvores altas em ambos os lados da pista, tornando difícil de observar os arredores. Precisavam encontrar um lugar onde pudessem ver o horizonte e a floresta claramente.
E esse lugar era a ponte.
Era uma construção pequena; apenas quinze metros de aço e concreto ligando as margens de uma antiga falha no relevo.
Ele estacionou pouco antes da ponte, e ela ficou observando os homens descerem do carro. Ezequiel correu logo para a beirada e começou a olhar em volta. Arnaldo o seguiu sem qualquer pressa.
Olívia desceu com cuidado. A perna esquerda protestou com o esforço, mas do lado de fora não fedia tanto a sangue. Agora estava livre para se incomodar com o cheiro de sangue e suor em seu corpo, e em como sua pele estava grudenta.
Mancou até a grade de proteção e viu o que eles viam. Um vento frio e constante esvoaçava seus cabelos.
Nada.
Estavam olhando para a maior parte da área de influência do demônio; toda a floresta que cercava a cidade e propriedades rurais. Eram quilômetros além da conta, de um verde denso, com colinas, e cercado por montanhas baixas. E das montanhas, nuvens carregadas se deixavam levar pelo vento. A região em breve estaria quase totalmente na sombra... e talvez na chuva.
Ezequiel não tinha desanimado ainda.
- Deve haver alguma coisa...
Arnaldo puxou os próprios cabelos.
- Não tem nada pra ver aqui! Era pra gente estar lá embaixo atrás daquela coisa!
Ezequiel respirou fundo.
— Nós não temos ideia de onde procurar.
— Quem liga?! Ele vai tentar nos pegar mesmo!
O tom da conversa já indicava onde ela iria parar.
— Ou talvez ele prefira ver TODAS AS COBRAS E ONÇAS DAQUI ATRÁS DO NOSSO RABO! — Respirar fundo não tinha funcionado com ele.
Arnaldo rosnava:
— Eu não tenho medo de malditas cobras e onças — dizia, fechando os punhos.
— Velho SUICIDA! — disse Ezequiel.
— É, eu CANSEI! Cansei dessa merda! Eu quero MORRER!
Um leve tremor subitamente percorreu seus ossos, de baixo pra cima. Em seguida, um som como de um trovão abafado ecoou pela serra. A rocha se partiu em algum lugar bem acima deles. E quando contemplaram o alto, tiveram seus olhos iluminados por milhares de rápidas e cintilantes estrelas azuis. Olívia sentiu que estava, de fato, dormindo e sonhando com aquilo. Um sonho azul e cristalino. Algo impossível de se acreditar que está vendo, mas tão lindo que te fazia não pensar nisso. Como um sonho, era tão fascinante que a mente simplesmente se deixava entreter.
As estrelas eram a borrifada de água que uma nascente fizera antes de despejar uma torrente de brilhante água azul montanha abaixo. Encharcando as árvores com luz.
Eles assistiram com grande expectativa a água finalmente alcançar a falha sob a ponte, se transformando em uma volumosa e potente cascata que iluminou a área. As árvores no fundo da falha simplesmente se soltaram do solo e foram levadas pela água, até magicamente se enterrarem dezenas de metros abaixo, delineando o curso. O rio não perdeu velocidade alguma modificando a natureza, e como uma serpente de luz, terminou de descer a serra e seguiu pela floresta.
Arnaldo foi o primeiro a dizer algo:
— MINHA SANTA MÃE! Isso é...
— É um sinal – disse Ezequiel, dando um sorriso amarelo.
— ELE ESTÁ AMALDIÇOANDO TODA A TERRA!
Ver novamente um rio de luz azul fez Olívia reviver a noite em que fora capturada; como fora facilmente enganada e atraída pela ilusão. Não podia acreditar que estava acontecendo tudo de novo.
E não era só isso que a preocupava.
— Você... — ela se aproximou do marido enquanto pensava em como ia dizê-lo.
— Já esperava que ele nos daria um sinal? Num lugar como esse? Como?
Ezequiel a olhou com sinceridade e a contou:
— Eu acho que já estaríamos mortos se ele quisesse... se ele ainda não nos quer mortos, então quer que o encontremos.
Arnaldo riu.
— Há! Então vamos mesmo todos morrer.
— Não sem lutar — respondeu Ezequiel.
— Vamos fazer exatamente o que o que ele quer — disse Olívia. — E não temos escolha.
Eles invariavelmente abaixaram as cabeças e ficaram em silêncio.
- É isso aí, chega de papo – Num instante Arnaldo tinha substituído sua melancolia por resignação. – Vamos acabar logo com isso. Tem uma descida um pouco mais à frente que vai nos tirar da serra. Mas vamos ter que andar uns dois quilômetros. Lá embaixo ela se afasta do rio.
Os três se olharam nos olhos e concordaram.
De volta à picape, Arnaldo os guiou aos seus sombrios destinos.
Cinco minutos depois, encontraram uma placa quebrada indicando a descida mencionada por Arnaldo. Olívia não conhecia tal caminho, e descobriu uma estrada de terra íngreme e esburacada, tão sinuosa quanto o rio. Arnaldo dirigiu apressado, metendo as rodas em todos os buracos que podia. Ninguém reclamou. Nem mesmo Ezequiel ao bater a cabeça na porta. Talvez estivessem sentindo a mesma sensação de medo e excitação que ela.
De vez em quando viam as árvores que margeavam o rio. Iluminadas pela luz da água, pareciam emitir seu próprio brilho azul, que percorria as copas em ondas lentas e pulsantes.
A luz azul do demônio transformava tudo que tocava. Era hipnotizante mesmo à distância.
Como na noite que eu... sumi por sete dias.
Perderam-nas de vista quando a picape mergulhou nas sombras da floresta, no final da descida. A partir dali a estrada os levaria na direção oposta à do rio, então Arnaldo puxou o carro para a esquerda, atropelando alguns arbustos, e dirigiu até onde as árvores permitiam antes de ficarem próximas demais. Dezenas de metros fora da estrada.
Eles logo perceberam que não tinham sido os primeiros a chegarem ali.
A caminhonete da delegacia estava parada a menos de trinta metros deles. Era possível ver o teto e a sirene por trás de um pequeno aclive cheio de arbustos.
- Não é possível! – Disse Olívia. – Gomes está aqui?!
- O que aquele safado está fazendo? – Disse Ezequiel – Vamos precisar ter ainda mais cuidado.
Desceram da picape e, fazendo o mínimo de barulho possível, se apressaram em pegar tudo. Ezequiel não podia mais atirar e acabou se tornando o burro de carga; levava o machado na mão direita e a bolsa da motosserra pendurada nos ombros, com a presilha de seu rifle presa à alça. Arnaldo levava seu próprio rifle e metera as balas restantes no bolso. Olívia carregaria apenas a foice.
Ninguém viu os dois pares de olhos de luzes azuis, brilhando na vegetação com avidez.
— Eu vou ver a caminhonete — disse Arnaldo. Fiquem aqui.
— Com esses cartuchos chacoalhando nos bolsos? — perguntou Olívia — Me empresta seu rifle. Eu vou.
— E se ele estiver lá?! — perguntou Ezequiel.
— É melhor ele tomar cuidado.
Olívia se aproximou por trás do aclive e conseguiu ver a caminhonete inteira. Os vidros estavam levantados, então era provável que estivesse trancada e vazia. Com cuidado ela observou o retrovisor direito procurando o reflexo de Gomes no espelho. Nada, então continuou agachada até ficar embaixo da janela do passageiro.
Levantou com o rifle na frente dos olhos. A boca do cano seria a primeira coisa que a pessoa veria se... houvesse alguém ali.
Logo seu corpo relaxou e seus olhos foram atraídos para o longo objeto deixado sobre o banco.
Levantou a mão e acenou para eles virem. Sorria amplamente.
Antes que chegassem, virou o rifle nas mãos e quebrou a janela com a coronha. Arnaldo se assustou.
— Droga, mulher!
Ezequiel olhava alarmado para a floresta.
— Não precisamos mais ter cuidado – disse ela abrindo a porta por dentro e removendo a espingarda de cano duplo no suporte de teto.
— Como Gomes é burro! — exclamou Arnaldo.
— Foi muito fácil — comentou Ezequiel. — Não acham estranho?
— Acho — disse Olívia —, mas com certeza é melhor do que deixarmos com o delegado. Acha que pode ser uma armadilha?
Ela encontrou uma caixa de munições sob o banco, e após encher os bolsos com as capsulas vermelhas guardou o restante na bolsa da motosserra.
— Bom, o cartucho poderia estourar na sua cara... mas não é nisso que estou pensando.
Arnaldo pegou a espingarda e a dobrou. Havia um cartucho em cada buraco.
— Esse calibre é alto — disse, olhando-os com um princípio de sorriso. — Explode as coisas... Em que está pensando Zeca?
— Eu acho que faz parte do plano dele.
— BAAH! — gritou Arnaldo — Foi você que nos levou até o sinal dele, então não me venha com essa merda. Já estou com merda até o pescoço. Vamos embora. Pode levar meu rifle Olívia?
— Claro — respondeu, e olhando para Ezequiel disse: — Ele está certo. É tarde demais pra ficar pensando que é tudo plano dele. E só estamos aqui por sua causa.
— Tá, tá. Já entendi. Só estou dizendo.
Por um instante achou que iria ficar desconfiada dele, então começou a andar para não pensar no assunto. Tinha que afastar esse pensamento para não começar a enlouquecer.
Eles andaram em fila por uma floresta cada vez mais escura e fria. As nuvens cinzas que tinham visto enquanto desciam a serra finalmente os cobriram com suas densas sombras, e eles se tornaram habitantes da penumbra. Aquele estado transitório da luminosidade onde as cores desbotavam e morriam.
Não se passaram dez minutos até a dor em sua perna ocupar todos os seus pensamentos. E não se passariam mais dez até ela achar a dor insuportável. Ela descia para o calcanhar, transformando-o em uma engrenagem enferrujada. Sabia que os outros não estavam melhores. Ela se deu conta de que Arnaldo gemia a cada trinta segundos. Por outro lado, Ezequiel não emitia som algum. Olívia estivera observando sua mão inchar e mudar de cor naquela tarde, e se não estava doendo horrores, ou ele fingia muito bem, ou ela estava dormente.
Relâmpagos cortaram as nuvens, imprimindo em sua retina algumas fotografias brancas das costas de Arnaldo e da floresta à frente. Naqueles flashes de luzes, as sombras das folhas das árvores pintaram um mosaico preto e branco no chão, e para ela as sombras formavam um caótico tabuleiro de xadrez. Porém o instante passou, e a escuridão lhe pareceu maior que antes.
Arnaldo se virou, pretendendo falar alguma coisa, mas suas palavras desapareceram quando os trovões rasgaram o ar ao meio.
— O rio está lá! — repetiu, e ela viu a luz azul transparecer em alguns pontos distantes.
O rio.
Nesse momento Ezequiel a empurrou, obrigando todos a seguir caminho.
— Vamos! Vamos! Vamos! Tem alguma coisa lá atrás! Parece longe, mas... é melhor a gente correr! É melhor eu estar errado sobre que animal faz isso!
Olívia e Arnaldo sentiram o medo em sua voz, mas a curiosidade travou suas pernas até que ouvissem o som.
Eram lamentos, muitos, como rugidos de tristeza. Eles choravam para a floresta inteira. Não soavam tão ameaçadores, mas não havia como se enganar sobre que boca fazia aquele som. Uma criatura que já encontrou muitos homens andando sozinhos, e muitos deles se ajoelharam e clamaram por Deus, enquanto suas bexigas se esvaziavam, pouco antes de serem feitos em pedaços.
 Olívia estremeceu. A sensação de urgência tomou cada nervo de seu corpo. Obrigando-a a transformar seu desespero em movimento.                                                          
 Algo semelhante ocorreu com os outros. Arnaldo gritou alguma coisa sobre ser mastigado, e eles correram com tudo que tinham. Miravam as luzes azul-elétrico, difusas pelas árvores
Tudo ao redor e atrás deles estava muito escuro, como se fosse quase noite. Aquela luz à frente parecia ser a única esperança.
De repente os rugidos ficaram mais altos e mais rápidos. Soando menos como um lamento e mais como uma sentença de morte. Era fácil imaginar aqueles felinos gigantes alcançando-os num instante com sua potência assassina, e dilacerando-os no frenesi sanguinário que o demônio causava aos animais.
Começou a chuviscar. Não que tenha dado muita atenção a isso. Sua perna gritava. Seu coração batia como um tambor. Seus pulmões berravam... E tudo que ela ouvia era o triste ódio das onças.
— ESPEREM! — gritou Ezequiel, esbaforido. Ela sabia que a motosserra não era nada leve.
— Por que estamos correndo?! Como o rio vai nos salvar?!
Arnaldo gritou de volta, sem parar de correr:
— São muitas, Zeca! Nossa única chance é conseguir atravessar o rio!
— Esses gatos não têm medo de água, porra!
Não pararam de correr.
Mais trovões racharam o céu, e a água acumulada despencou de uma vez sobre eles. A chuva pesada inundou a floresta com sua cacofonia de infinitas gotas batendo em infinitas folhas.
Ela se deu conta de que não ouvia mais as onças. Tão rápido quanto começara, acabou. Como um sonho.
Faltavam algumas centenas de metros até o rio e as árvores transformadas que o margeavam. E suas luzes eram como um incêndio gelado cortando a floresta. Queimando até o céu como incrível fogo azul. E ao invés da fumaça preta e tóxica, viam uma tênue névoa azulada se espalhando entre as árvores.
Daqui em diante tudo vai ser diferente. Pensou.
Eles saíram da aparente escuridão e avançaram desembestados para dentro da atmosfera cada vez mais azul. Estavam nitidamente exaustos. Ezequiel tinha os olhos injetados e o rosto brilhando de suor. Arnaldo gemia a cada três metros que percorriam. Para Olívia parecia que sempre havia uma protuberância de raiz disposta a torcer seu tornozelo enfraquecido.
Suas roupas lhe aderiram a pele e ela percebeu que em minutos começaria a tremer de frio; assim que o sangue esfriasse. A chuva também tinha feito as onças silenciarem.
Tenho que parar de pensar assim. As onças pararam porque ele quis. Estava apenas nos apressando. Nos obrigando a correr para o rio.
O rio dele.
Estavam quase lá.
Agora podiam ver que o rio se desenrolara pela floresta como um tapete de luz líquida, com três ou quatro metros de largura, e sabe Deus quanto de profundidade. Parecia deslocado, como se não pertencesse àquele lugar. E essa sensação Olívia atribuiu ao fato de não haver qualquer desnível nas margens. Isso confundia a visão.
A superfície radiante e tremeluzente da água, sempre no mesmo nível do solo, era como um espelho entre dois mundos, e se ela o atravessasse, supôs, entraria no mundo feito de luz azul onde todos os rios eram como aquele.
Olívia se sentiu tentada a olhar seu reflexo na água. Imaginava se poderia ver a si mesma transformada em luz.
Um rosnar grave e profundo tirou-a de seus devaneios, e os três se viraram para o que pareciam ser duas pequenas estrelas azuis flutuando atrás das árvores, a menos de um metro do chão. Podiam enxergar muito melhor ali, e apesar de terem certeza que naqueles olhos de luz, a carnificina brilhava, não podiam ver a boca que rosnava, tampouco o corpo que retesava os músculos por antecipação.
Dois pares de estrelas surgiram a poucos metros de cada lado do primeiro. Seus rosnados enchendo os ouvidos.
As onças se adiantaram. Seus olhos de estrelas deixaram rastros de luz azul pairando no ar.
Ofegantes, andaram de costas, pisando com cuidado. Sabendo instintivamente que elas atacariam juntas assim que corressem ou dessem um tiro. Faltavam menos de vinte metros até rio.
E o que diabos iriam fazer? Nadar na luz até o outro lado?
 Enquanto recuavam, mais pares de estrelas saltaram da inexistência. Uma sucessão interminável de feras abria os olhos por toda a parte.
Como as luzinhas que me atraíram da primeira vez.
— Vão nos cercar se não chegarmos no rio logo! — Disse Arnaldo. Mantinha a poderosa espingarda abaixada enquanto andava, pronta para ser usada.
— E depois?Perguntou Olívia.
Estavam passando pelas árvores mais próximas da água. O grave rosnar ficava cada vez mais alto.
Impaciente.
— Esqueçam os rifles, a munição molhou. Diabos! Largue isso Olívia!
Eles chegaram à margem de costas coladas. Ela soltou as armas e a espingarda foi empurrada em suas mãos.
Mais balas. Pensou. Seu olhar disparando freneticamente entre os três pares de luzes flutuantes mais próximos. Os bolsos da calça estavam cheios de cartuchos para aquela arma.
Mas não há tempo! Não há como! São dezenas!
Arnaldo havia tirado a motosserra da bolsa e se preparava para puxar a corda de ignição. Ezequiel defendia seu lado com as pernas bem abertas e o machado curto em riste. Acima do rio a chuva brilhava multiplicando a misteriosa cor do demônio.
Três feras avançaram, de repente cada par de estrelas ganhou uma cabeça iluminada, e as cabeças ganharam corpos logo em seguida. Não tinham qualquer substância sob os contornos luminosos que desenhavam sua pelagem cheia de manchas, e deixavam um rastro embaçado no ar, fantasmagórico.
Vou morrer.
As onças mergulharam pelo ar pelo que pareceu uma eternidade. O tempo ficou pastoso, se arrastando como os rastros de luz. Ela levantou a espingarda com a mesma lentidão, e quando a onça abriu as garras, prestes a abraça-la e rasgar seu pescoço, os olhos dela se fecharam e a espingarda detonou a munição.
Os três gritaram e lutaram.
Quando tornou a ver, ouviu sua voz estrangulada, e seus últimos gritos escaparam antes de serem sufocados pelo sangue que jorrava ruidosamente. Levou a mão ao pescoço.
Intacto.
À sua frente, no fim de um arco de luz que se esvaía no ar, uma das onças arrancava o rosto de Ezequiel a dentadas. O som era horrível. Porém seu marido tinha se tornado um ser de luz. Era outra surreal aparição luminosa.
Como espíritos.
— ... ?
Ela se virou, alheia as outras onças que se aproximavam, e então entendeu.
Olhava para a Olívia que recebeu um abraço e teve a garganta arrancada. Sua gêmea de luz, ainda tremendo sob a fera. E ao lado dela, o verdadeiro Ezequiel, olhando petrificado sua própria versão de luz ser devorada.
— Saia de cima! — gritava Arnaldo em pé, atravessando a onça com a moto-lâmina e sendo ignorado.
Presas de luz e vento entraram em sua coxa logo acima do joelho — ela ouviu o tecido da calça e a carne cedendo sem ceder de verdade — e outra desesperada Olívia de luz foi puxada de dentro dela, gritando a plenos pulmões o nome do marido enquanto era arrastada. Foi quando uma segunda onça mordeu o lado da barriga, abrindo-o. As onças trocaram apenas alguns rosnados e começaram a disputar os órgãos dela. Sua cópia continuou respirando. Olhava para os lados com a face da morte. A cabeça e os braços não sabiam o que fazer e se agitavam de forma incoerente.
As onças fantasmas fluíam sobre eles incessantemente, criando e destruindo cada vez mais versões de luz. As bestas corriam e matavam por toda a parte, chegando a disputar as vítimas em violentos cabos de guerra onde os cabos sempre se partiam. Em instantes todo o espaço na margem estaria preenchido com os rastros luminosos do massacre.
A cabeça de Ezequiel despontou de trás de uma onda de luz e Olívia o chamou o mais alto que pôde, se vendo completamente abafada pelos gritos de excruciante dor que as muitas outras Olívias sofriam. Aqueles gritos eram bem mais altos que todo o resto, e convergiam para uma espiral em sua cabeça, deixando-a tonta.
Múltiplas faixas se cruzavam e se sobrepunham de maneira enlouquecedora. Através delas os corpos de luz brilhavam mais forte, gladiando-se. Os corpos de verdade como o dela eram engolidos e desapareciam.
Um redemoinho de dor indescritível crescia e tomava forma em sua imaginação. Centrifugando cada vez mais sofrimento em suas insanas correntezas. Sua cabeça girava quase no mesmo ritmo. Fechou os olhos, tentando fugir, mas continuou vendo e ouvindo as Olívias sendo dilaceradas e, ainda gritando, boiarem aos pedaços para dentro da espiral em sua cabeça.
E lá no centro...
Sentiu as pernas enfraquecendo. Antes que caísse começou a correr sem direção. Não saberia dizer por quanto tempo procurou Ezequiel e Arnaldo, mas sabia que seu tempo estava acabando.
E então. Sem aviso. O redemoinho feito com todo o sofrimento das Olívias de luz piscou numa visão, tomando toda a realidade. Esse instante durou uma eternidade durante a qual ela não existiu; era uma partícula consciente pairando no vazio. À sua frente, sugando eternamente a linda e maligna energia azul, um buraco negro do tamanho do universo emitindo ao mesmo tempo o coro de gritos e um repugnante som de sucção.
E lá no centro, o escoadouro. A essência pura da dor. O horror como indescritível singularidade.
O inferno.
O momento se foi num piscar de olhos. O vórtice sumiu. Ao redor dela a matança de fantasmas progredia.
Ela sentia a loucura da visão se alastrando por dentro dela. Infectando-a com um medo inconcebível. Tinha medo de ver o buraco novamente; de ser engolida e se tornar una com o sofrimento eterno.
A terrível ironia de sentir isso foi que os gritos dentro de sua cabeça – mais altos que todo o caos ao redor – voltaram a se intensificar, em ressonância com aquela coisa horrível que a desejava tanto.
Ela agarrou sua cabeça com as duas mãos e correu a esmo gritando. A sensação aumentou de uma vez e a transportou de novo para a porta do inferno, mas muito mais perto e se aproximando.
Quando aquele tempo sem fim acabou, Olívia pisava em falso. Estava sobre o rio e não havia mais volta. Enquanto caía, O ralo apareceu na superfície da água e a engoliu.

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