Lá dentro o preto absoluto se
tornou branco total.
E ao invés de cair, ela apenas boiou no vazio. Colocou as mãos na frente dos
olhos e não conseguiu vê-las. No mesmo instante surpreendeu-se ao perceber
finíssimos fios azuis preenchendo o espaço com caminhos delicados e complexos.
Eram suas veias e nervos que apareciam primeiro. Pareciam carregados de
eletricidade. Ossos e músculos logo tomaram forma na energia azul, banhados
naquele sangue anil.
Ela. No meio do vazio
branco e adimensional, feita de luz azul.
De repente, sentiu que
era puxada. Seu corpo começou a voar. Na distância viu um ponto escuro surgir e
crescer, conforme se aproximava. Tudo o mais era branco.
O ponto também voava em
sua direção, crescendo rapidamente. Era outra pessoa. Não, era... E uma
tristeza esmagadora aperta-lhe o coração e a garganta. Começou a soluçar, suas
lágrimas brilhantes deixavam um rastro de gotas para trás.
Não sabia porque chorava
tanto. Porque doía tanto olhar a si mesma naquele vazio?
A Olívia de carne e osso
perante ela não estava chorando. Aquela versão dela parecia ter acabado de
chorar, e estava tremendo de raiva. Os dentes cerrados. Os olhos vermelhos e
inchados.
Elas levantaram as mãos
ao mesmo tempo, faltando poucos metros. Olívia queria saber qual era o
problema, mas a outra apenas a acusava com um olhar duro de ódio. Então seus
dedos finalmente se tocaram, desaparecendo então em uma explosão ofuscante. Seu
braço foi tragado pelo brilho e envolvido num frio enregelante. A última coisa
que ela viu antes de tudo desaparecer foram os olhos arregalados de sua sósia,
num grito mudo.
Ela foi agarrada pelo pulso
e tirada às pressas daquela água calma. De volta a um mundo gelado e inseguro.
Respirou com força, mas não tinha se afogado. Alguém tentava fazê-la se sentar,
mas encolhida no chão e chorando parecia melhor.
Eles chamavam por ela e a
balançavam. Muito lentamente, Olívia tomou consciência do momento presente e balbuciou
os nomes dos homens que a acudiam.
- Olívia, está sentindo algo
diferente? – Perguntava Ezequiel pela décima vez.
- Não sei... O que
aconteceu?
- Você caiu no rio, e as
onças pararam o que estavam fazendo e foram pra lá. Os corpos dos... as coisas
transparentes sumiram.
Ela olhou em volta. A
chuva havia parado. A área ao lado do rio estava pacífica e bem iluminada pelo
rio. Diferente do resto da floresta, que desaparecia no breu. Pelas margens, ao
longe, dezenas de onças caminhavam para o mesmo desconhecido destino que eles.
Deixou que a ajudassem a
ficar em pé. Sua mente repetia a experiência no vazio até a deixar tonta.
Percebeu que Arnaldo e Ezequiel a encaravam num misto de apreensão e incerteza,
esperando que dissesse algo.
Para desfazer o clima
disse a primeira coisa que lhe ocorreu:
- Então, como me tiraram
do rio?
Foi Arnaldo que
respondeu:
- Não se lembra? Justo
quando Zeca ia pular você esticou o braço para fora. Tem certeza que está bem?
- Vocês tocaram a água?
- Um pouco, mas não
aconteceu nada – disse Ezequiel – Essa coisa parece que nem molha.
Ela fitava o rio de luz
- Vamos andando.
Começaram a seguir o
curso d’água. As onças fantasmas já desapareciam, ocultas pelos troncos no
caminho.
Logo a calmaria recém
instalada se transformou em sofrimento antecipado; era a expectativa do que
viria a seguir que dominava os pensamentos. A sensação era a de estar em uma
jangada em um rio caudaloso, deslizando sobre correntezas suaves, diretamente
para a queda abismal de uma cachoeira e a morte certa.
Cinco minutos depois
Olívia notou novos ruídos no ambiente, que incrementaram o barulho da chuva com
sons agudos e naturais – pareciam grilos e outros insetos –, dando-lhes a
impressão de estarem andando em uma floresta quase normal.
As primeiras luzes azuis apareceram
em seguida. Minúsculas. Eram incontáveis formigas, besouros e abelhas,
pontilhando grama, ar e árvores como lâmpadas vivas.
Enquanto os homens se
fascinavam com o efeito, um feixe de tênue luz índigo cortou o céu escuro e
iluminou as nuvens próximas. Encontrava-se a uma distância considerável ainda,
brotando sobre algum lugar misterioso à frente. Era sem dúvidas o destino do
grupo. Ao vê-lo Ezequiel e Arnaldo ficaram sombrios de medo.
Subitamente, um lindo
canto de pássaros somou-se à sinfonia fantasma. Do nada seus espectros
apareceram pousando e voando pelos galhos em revoadas aleatórias. Os três
caminhantes mal tiveram tempo de apreciar isso, quando dezenas de macacos sapecas
saltaram da aparente inexistência e deram início a uma caótica e barulhenta
brincadeira pelos galhos entrecruzados.
Diferente de antes, as
centenas de vozes simultâneas se completavam em um frenético, porém um tanto
harmonioso ritmo. Como uma orquestra composta pela fauna espiritual e regida
pela energia azul. Tocando sua confusa melodia enquanto acompanhavam os
peregrinos pela margem do rio.
A música alcançava o
ápice e animais maiores surgiram por toda a parte. Antas, capivaras, cavalos e
outros se juntaram a festa com seus sons característicos.
Era impossível não se
animar também com tudo aquilo. Afinal, de uma forma ou de outra a floresta
transbordava de luz, de alegria, e... de vida?
De repente um horrendo
berro de dor esmagou a todos feito uma bigorna. Pesando sobre os corações do
trio como ferro gelado. Mergulhando a floresta no desespero que sua voz
carregava.
Por três ou quatro
segundos fez-se um silêncio mórbido. O grupo parou, respirou – certamente ao
mesmo tempo de quem gritava – e escutou.
O brado voltou a soar. O
sofrimento parecia ter triplicado de intensidade. Como se o coitado experimentasse
tamanha mutilação, que sua sanidade se desfazia a cada momento, arrancando sons
que suas cordas vocais nunca haviam emitido.
- É o delegado, não é? –
Perguntou Ezequiel.
- Conheço um porco
guinchando quando ouço um – respondeu Arnaldo.
Olívia tinha pleno
conhecimento de que, qualquer que fosse a sina de Gomes no momento, ele a
sofria por ter se deixado enganar pelo demônio. Isso, porém, não a impedia de
querer salvar o homem do tormento.
O que antes era uma festa
para os bichos se tornara uma marcha silenciosa e automática. Os animais
andavam soturnamente; suas cabeças baixas como se estivessem tristes.
O delegado Gomes
engasgava entre um grito e outro, chorando copiosamente. Soltava palavras
desconexas do que parecia uma oração. Seus pedidos sempre interrompidos por uma
onda de agonia.
O grupo seguiu com
crescente apreensão, com o feixe de luz se tornando mais forte no céu e os
lamentos do delegado enfim minguando. O rio descia sempre – como é normal dos
rios – sem alterações na correnteza e com mínimas alterações no percurso até
então. No entanto, ao se depararem com uma subida bem mais íngreme à frente,
não esperavam vê-lo subindo o terreno, inexorável. Inabalável.
Assim prosseguiram sobre
o que aparentava ser uma imensa colina. No topo, o feixe de luz azul dividia o
céu. Uma horda sem fim de animais luminosos subia por todos os lados. Todos
rumo à misteriosa congregação.
O terreno aplainou,
revelando uma ampla área, de poucas árvores e tomada por névoa e espíritos de animais.
A colina se curvava tanto pela direita quanto pela esquerda, dando a estranha
impressão de que por trás do feixe de luz e daquelas nuvens opacas o topo se
fechava em um imenso círculo.
O rio seguia reto,
desaparecendo, e logo nos primeiros passos começaram a sentir. Era a névoa.
Fedia a coisa morta. Morta a dias. E só ficava mais forte.
- Puta merda! – disse
Arnaldo.
O rio continuou fumaça à
dentro, bifurcando-se então frente a uma enorme parede, ou barreira de raízes, com
duas vezes a altura deles, seguindo em curva por ambos os lados, nas margens
opostas dos rios – ou rio. Além das raízes a névoa era iluminada pelo feixe de
luz que viam no caminho.
A fauna fantasma
preencheu as margens onde eles se encontravam. No solo e nas árvores não havia
mais espaço. A plateia era realmente imensa.
Após um momento de
estupefata observação, Ezequiel tomou a dianteira e andou através dos animais,
que não reagiram ao serem atravessados. Seguindo-o, Olivia descobriu serem tão
frios que causavam ondas de arrepios nas costas.
Enfim chegaram onde o rio
se dividia ao meio, colocando-se entre eles e aquela absurda formação de
raízes, grossas demais para serem comuns, e que se revelaram esbranquiçadas por
um tipo de musgo ou líquen. Acima e além dela, a névoa espessa era toda
iluminada de dentro pela luz azul.
- Isso é... impossível! –
Disse Arnaldo embasbacado. – Não existe nada assim aqui... ou em qualquer lugar...
É uma ilusão.
Ezequiel coçou a cabeça.
- É... mas não importa...
Desde que começamos a seguir essa porcaria de rio mágico nada fez sentido. –
Ele terminou gesticulando para os fantasmas.
Olívia andou pela
beirada, num estreito corredor entre os soturnos animais e o rio. Olhava de
perto as raízes cinza-branco. Sob a luz do rio, pareciam centenas de vermes que
morreram acasalando.
Um vento repentino trouxe
uma onda de névoa diretamente de cima das raízes, que se derramou sobre o rio e
quebrou sobre eles, trazendo muito sabedoria.
Agora sabiam o que havia
lá.
Um ar denso de podridão.
Rançoso, quase que grudento. Apesar de ser um cheiro familiar em seus
modos de vida, com aquele toque grotescamente doce de carne putrefata, mas
multiplicado tantas vezes que era impossível não sentir o gosto da coisa
também. Olívia sentiu a umidade nauseante se acumular nas mucosas da garganta.
Suas entranhas se contraíram. Vomitou tudo que tinha comido.
Deveriam ter saído
correndo, mas ficaram todos ali, tossindo e tendo ânsias convulsivas. Ela sabia
que não conseguiria voltar atrás tendo chegado àquele ponto. Não daria a si
mesma essa frustação; de não descobrir o que havia a seguir.
Tinham recebido apenas um
gosto do que estava por vir. Se pareceu em algum momento que estavam vivendo um
pesadelo, se engaram. Aquele cheiro dizia que o pesadelo começava ali.
Logo do outro lado do
rio.
Olívia só podia explicar
sua vontade de subir lá como pura curiosidade. A do tipo estúpida que sempre
leva tanta gente pra vala. Sentia que estava assistindo a si mesma, incapaz de
decidir o próprio rumo.
- Se ainda quiserem
continuar – disse Ezequiel, e apontou para algum lugar atrás dela – acho que dá
pra pular naquela.
A raiz que ele apontava
era espessa como um barril, e se projetava parcialmente sobre a água. Apesar de
arriscado, pular ainda era melhor do que dar a volta sem saberem se haveria uma
passagem decente.
- Quem vai primeiro? –
perguntou Arnaldo.
- Bom, a ideia foi minha.
– Respondeu Ezequiel, se adiantando. Ele deu o machado à Arnaldo, atravessou
vários fantasmas para pegar distância e correu sem hesitar. Saltou longe, mais
que o necessário, aterrissou arrancando musgo e se jogou pra frente, batendo
com força e agarrando as raízes. Gritou; de certo pela mão quebrada.
- Estou bem!
- Ok. Olívia, segure pra
mim por favor – disse Arnaldo estendendo a bolsa com a motosserra.
O velho colocou
velocidade em pernas que há muito não tinham rapidez ou elasticidade. Seu pulo
foi curto, quase na ponta da raiz, e os pés resvalaram no musgo solto, se
separando. As velhas bolas foram de encontro à madeira e ele abraçou a raiz.
- Uuhh...
Olívia esperou Arnaldo
levantar e se recuperar. Arremessou o machado, a espingarda do delegado e por
fim a motosserra, que foi apanhada com mais dificuldade.
Finalmente era sua vez de
pular. E ela o fez sem pestanejar. Pisou firme na raiz e ainda chegou com graça
junto dos homens, quase sem ajuda.
- Sua perna já está boa?
– Perguntou Ezequiel, confuso. – Você parou de mancar faz tempo e esse pulo foi
fácil demais.
A pergunta a pegou de
surpresa. Desde que caíra no rio esquecera completamente o ferimento da
mordida.
- Minha perna...
De repente um ronco grave
se fez ouvir, como um gigante respirando.
- VEM CHEGANDO AI...
A voz do demônio vibrava
nos tímpanos. Soava ao mesmo tempo irritada e animada, e devastou a coragem do
grupo.
Eles se encararam.
Corações disparando. Ezequiel balançou a cabeça tomando a confirmação de todos.
No que o fizeram, Arnaldo fechou a cara e retorceu os cantos da boca para
baixo. Determinado.
- Estou indo, amor.
- Fiquem juntos – Disse
Ezequiel – não importa o que aconteça.
Para sua surpresa, seu
marido se aproximou e lhe deu um beijo breve, cheio de ternura, e ela quase
chorou novamente.
Quando os homens
começaram a subir as raízes, ela se ajoelhou rapidamente e verificou sua perna,
constatando que o ferimento desaparecera por completo. O rio abaixo captou seu
olhar; o intenso e cintilante mistério azul a perturbava ainda mais. Tudo sobre
o demônio se mantinha à quilômetros da compreensão.
As protuberâncias
ofereciam ótimos apoios e em poucos segundos ela se emparelhou aos demais, que
observavam o lugar.
O que de baixo parecera
uma barreira, na verdade se tratava de uma imensa plataforma de raízes entroncadas
cobertas de musgo velho. O conjunto devia comportar terra, pois aqui e ali se
viam pequenas árvores secas e retorcidas, com fiapos brancos de vegetação morta
ondulando nos galhos. A neblina difundia a luz do feixe à partir do centro do
lugar, envolvendo tudo como um gás azul pálido.
Uma palavra lhe vinha à
mente: Lúgubre.
Mas o que manteve o grupo
parado não era a sensação que o lugar transmitia, e sim a quantidade de mortos
que atapetava o solo. Salvo as beiradas das raízes onde pisavam, centenas e
milhares de cadáveres de animais em avançado estado de decomposição
atulhavam-se até onde a vista alcançava.
- ESPERO QUE NÃO SE
IMPRESSIONE FACILMENTE... ESTAMOS APENAS COMEÇANDO...
- Ah, vai se foder –
rosnou Arnaldo por entre os dentes, e tomou a dianteira, primeiro esmigalhando
a ossada magra do que parecia ser um macaco, sob a bota, depois pisando em um
crânio de anta que soltou o couro e quase o derrubou. O velho seguiu impassível.
Ezequiel deu a deixa e
Olívia pisou à frente, triturando como cascas de ovo, insetos mortos, quebrando
costelas e colunas, desfazendo carne podre a cada passo.
Apesar de estarem no topo
de uma colina, não havia verdadeira brisa ou vento que suavizasse a repugnância
do ar, e cada respiração era um ato de penitência. Neblina e podridão eram um e
o mesmo.
O grupo foi vencendo os
metros rumo ao centro da plataforma, de onde a luz provinha. Os únicos sons que
ouviam era o chafurdar de suas botas. Frequentemente as barrigas dos animais
estouravam, ejetando tripas e gazes em suas pernas.
Enfim uma forma
gigantesca começou a transparecer. Era ninguém menos que a dona de todas
aquelas raízes. A árvore tinha facilmente oitenta metros de altura e parecia
morta. Seus galhos cobertos de fiapos brancos cobriam o céu. A luz concentrada
que viram à grande distância era emitida da base da árvore, banhando tudo acima
com intenso brilho azul.
O delegado Gomes estava junto
ao tronco de braços abertos, como se crucificado, mas sem pregos que o
prendessem à madeira. Sangrava por todo o corpo e suas roupas pendiam em
retalhos imundos. Por estar com a cabeça abaixada ainda puderam notar dois
círculos vermelhos logo acima da testa, escalpelados.
Continuaram se
aproximando, agora mais devagar. Dezenas de onças mortas rodeavam Gomes e a
árvore.
- CURIOSO, NÃO É?
Dessa vez a voz chegou de
uma direção específica. O grupo estacou e olhou para o alto, para uma perna
azul escuro que balançava a trinta metros de altura, em um galho junto ao
tronco. Não conseguiam ver muito mais que isso. Apenas sombras. Talvez sua mão
estivesse segurando um cachimbo.
- SIGA A ESPIRAL
DESCENDENTE... E GARANTO QUE NÃO HAVERÁ PERGUNTA SEM RESPOSTA... – Ele tragou, pois
realmente estava fumando, e soltou uma nuvem de fumaça – TENHO UMA PERGUNTA
TAMBÉM... – A voz silenciou de repente. Os segundos se prolongaram como se o
mundo estivesse parando. E voltou sem aviso, explodindo sobre eles a sentença
irrevogável:
- MAS TERÁ QUE PROVAR SER
DIGNO DESTE MISTÉRIO!
Ninguém conseguiu falar
ou se mover. Um relâmpago desenhou a silhueta chifruda e inumana, agora em pé
sobre o galho, e então a criatura não estava mais lá, como se nunca estivesse.
- ALI! – Gritou Arnaldo,
apontando.
De trás da árvore surgiu
o animal mais belo que Olívia já pusera os olhos: Uma enorme onça albina. Os
músculos ondulando sob o pelo curto. Parecia sagrada em meio àquela imundice.
Era o primeiro animal vivo em muito tempo.
Ela andou placidamente e
sentou-se de frente para o delegado. Lançava uma sombra sobre o feixe.
No instante seguinte,
Gomes levantou o rosto, encarando a fera. Mas seus olhos tinham como que
pequenas chamas azuis, e sua expressão era a da morte. O homem escancarou a
boca em um movimento repentino, gritando e vomitando ao mesmo tempo. Então luz
azul brotou do fundo de sua garganta e foi expelida em uma cascata pastosa,
esticando-se até o chão e formando um monte brilhante.
- Mas que porra está
acontecendo? – perguntou Arnaldo.
Para a surpresa de todos,
quando o vômito cessou, a massa informe no chão começou a se tornar
transparente, e choramingar. O fantasma de Gomes apareceu nu, encolhido em
posição fetal à frente do próprio corpo. Mesmo em espírito o delegado era gordo
e flácido.
A onça por sua vez
começou um grande e preguiçoso bocejo, e quando a boca não poderia se abrir
mais, a cabeça pendeu mole e o corpo desabou para o lado, permanecendo no lugar
apenas sua versão translúcida. O espírito do felino se levantou nas ancas e
rosnou.
- O quê é isso? – gemeu
Gomes, percebendo o animal – Por favor... Já chega... Eu não fiz nada de
errado... – Abraçando a si mesmo e tremendo, o homem se levantou. Tinha o rosto
retorcido de pavor.
A onça rosnou mais alto.
- NÃO! POR FAVOR! – O
espírito se espantou ao ver o grupo de Olívia, algo que não sabiam ser
possível. – SOCORRO! EZEQUIEL! ME AJUDEM POR FAVOR!!!
A fera se aproximou com
membros flexionados e presas à mostra. Quando saltou, o homem só teve tempo de
cair para trás, tendo a infelicidade de abrir as pernas por um momento. O
ataque foi ligeiro e brutal, arrancando todo o púbis e um pouco das coxas junto
com seus genitais. O sangue que jorrou era luz líquida e viscosa.
Gomes soltou um grito esganiçado,
cobriu o buraco entre as pernas com as mãos e rolou seu espírito agonizante
sobre os cadáveres do chão.
O felino engoliu o
petisco em um instante e atacou novamente, cravando suas garras dianteiras para
prendê-lo no chão. Barriga para baixo. Entre berros de agonia e socos inúteis,
a onça dilacerava sem pressa sua nádega direita, mordendo e puxando cada pedaço
até arrebentar.
Não parecia um ataque de
onça. Olívia sempre acreditou que as onças matavam suas presas antes de
comê-las, mas aquela fera parecia estar se divertindo. Como se para
provar esse pensamento, a fera testou suas afiadas presas na bacia do homem -
a quantidade de dor que aquilo causava. Os gritos de Gomes quase abafaram os
sons de seus ossos rangendo e cedendo entre as poderosas mandíbulas.
Ao se cansar daquela
brincadeira, a onça abocanhou o braço dele e o arrastou com facilidade até uma
pequena área onde as raízes não estavam cobertas de corpos. Gomes não tinha
mais forças para lutar. Viram o felino se jogar no chão com o braço ainda na
boca - do mesmo jeito que os gatos brincam agarrando coisas. E então, como se
gato fosse, chutou o homem com as duas patas traseiras, abrindo sulcos
profundos na cabeça e costelas do espírito
O fato de serem dois
seres radiantes e translúcidos em nada facilitava presenciar aquilo.
O braço cedeu no ombro. A
pele rasgou e esticou feito elástico, restando alguns nervos e tendões conectando
as partes. O sangue espirrava com força, cobrindo ambos.
Nesse momento uma forte e
inexplicável vibração subiu das raízes para as pernas do grupo. As luzes
ficaram mais intensas por um momento, em especial o brilho do sangue, e a
vibração parou.
A onça terminou de
arrancar o braço com uma torção e o largou. Pulou com ferocidade, mais uma vez
sobre o delegado, sobre sua cabeça. Abocanhou-o nas têmporas, como que para
quebrar o crânio. Fazendo-o gritar mesmo sem lhe restar forças. O tormento do
homem não tinha fim.
O chão tremeu novamente,
dessa vez mais forte e rápido. Percorreu as raízes de fora para dentro, para a
árvore, intensificando o brilho azulado que dominava o ambiente. Assim que a
luz diminuiu, outra vibração se seguiu. Pelo jeito não iria parar até se acabar
o que quer que estivesse acontecendo ali.
De toda a cena de tortura
sofrida pelo espírito de Gomes, Olívia ficaria especialmente perturbada pelo o
que ocorreu a seguir: O delegado e a onça começaram a derreter e grudar um ao
outro, suas substâncias espectrais se confundindo e se apagando na intensidade
da luz. Gomes gemia de olhos arregalados, parecendo totalmente consciente e
horrorizado com a liquefação e fundição de seu corpo. Foram afundando
lentamente em uma grande poça brilhante, e nos últimos segundos de liquefação,
Gomes abriu uma boca totalmente desfigurada, gorgolejando um longo e final
suspiro.
Olívia berrou, furiosa e
ensandecida...
- AAAAAAARGH! DEMÔNIO!!
... e sua risada maligna
e divertida respondeu de dentro da névoa.
- DESGRAÇADO, MALDITO!!
Nesse momento o ápice da
vibração estourou com um raio ofuscante que apagou todo o tronco da árvore de
vista. Quando enxergaram novamente não havia sinais dos espíritos ou da poça
que eles viraram, somente a base da árvore ainda emitia uma luz, ainda que mais
fraca. Isso, e o corpo real de Gomes também brilhava, os cortes por todo o
corpo acesos com energia azul e soltando fumaça. Se tratavam afinal, de
símbolos.
A força que o mantinha
preso desapareceu e ele caiu pra frente, de quatro. Em sua testa duas espirais
reluziam, e delas brotaram enormes pontas de ossos a lhe arrombar a cabeça. Logo
haviam enormes e pontiagudos chifres apontados para eles.
O monstro respirava
pesadamente, parecendo maior e mais branco a cada inalada. Lhe cresciam os pelos
albinos. Os símbolos ferviam a carne dos braços como brasas azuis.
- Merda! – praguejou
Arnaldo, já tirando a motosserra do ombro e se livrando da bolsa – Qual o
plano? Ezequiel?
- Olívia fica logo atrás
de nós e estoura o filho da puta antes que ele nos mate. – Ele olhou para ela:
- Tem que pegá-lo com esses dois tiros, amor. Cabeça ou coração. Você sabe.
Com o seu coração
a mil ela levantou a espingarda. Naquele momento ela só sabia que precisava
derrubar aquela coisa o mais rápido possível.
- NÃO!! – Gritaram eles.
Uma explosão ensurdecedora
e dolorosa a jogou para trás. Caiu sentada, afundando nos corpos podres. A
coisa que costumava ser Gomes deu um rugido demoníaco. Nem parecia ferida. E a
encarou com olhos ardendo como brasas azuis.
- Tem que chegar perto! –
Gritou Ezequiel, sem ser ouvido.
Ela lutou pra se
levantar, pronta para disparar novamente. Seus ouvidos zumbiam. Mirou melhor
dessa vez, mas o cadáver da onça albina estava entre eles, erguida pelo pescoço
com uma mão, como escudo. O homem-fera atrás já se levantava sobre dois metros
e meio de altura.
Antes que pudessem reagir,
o monstro girou a onça sobre os chifres e Olívia só viu um enorme borrão branco
voando em sua direção. O cadáver a atingiu em cheio, fazendo a disparar para o
céu e lhe tirando o ar dos pulmões. O peso da onça a jogou para trás e a
prendeu na decomposição Tinha uma dor lancinante na mão direita.
Passaram poucos segundos,
Ezequiel, Arnaldo e sua motosserra rugiram, assim como o monstro, e começou o
confronto. Enquanto isso Olívia lutava por ar, tossindo com os gases podres.
Quando seus pulmões se encheram daquilo e um pouco de oxigênio, trincou os
dentes e empurrou a onça. Seu indicador continuava no gatilho, retorcido e
esmagado quando a arma dera o coice. Ela empurrou, gemeu, chorou, e finalmente
se livrou do peso.
A fera soava ainda mais
enfurecida, enfim ferida. Então alguém gritou (merda!) e recebeu um golpe
violento.
Olívia forçou-se levantar
o mais rápido possível. Primeiro viu o monstro. Os símbolos desenhavam traços
no ar conforme ele atacava Arnaldo. Este por sua vez fugia, se protegendo com a
motosserra. Mais à direita Ezequiel também se ergueu do chão. O braço da mão previamente
quebrada pendia torto e com a pele talhada. Seu marido soltou um grito de dor e
fúria e avançou contra o homem-onça.
Ela sabia o quanto aquela
luta dependia dela. O quanto eles dependiam dela. Mas não ajudaria em
nada com uma espingarda descarregada. Estava atrasada e longe demais. Estúpida.
E ao carregar a arma se atrapalhava entre segurar, abrir os canos e pegar os
cartuchos. Burra.
Arnaldo cambaleava para
trás, cortando o ar em zigue-zague entre ele e a fera, que gotejava de cortes
nos braços e de alguns dedos decepados. Ele levantou a motosserra num ataque
vertical e no meio da ação recebeu um veloz chute no peito que mais pareceu um
coice. O velho voou para trás, deixando a motosserra cair.
A criatura não perdeu
tempo, e pulou sobre ele, errando por pouco. Suas patas esmagaram os cadáveres,
que esguicharam matéria pútrida para os lados e sobre Arnaldo. No próximo
instante iria trucida-lo.
Ezequiel dava o melhor de
si para impedir a fera. Naquele momento não conhecia medo ou dor. Corria com o
braço quebrado se contorcendo no ar. Iria colocar toda a força no próximo
golpe.
Desesperada, Olívia
fechou a arma carregada e disparou no monstro. E apesar da distância
considerável, os balaços o acertaram pelo ombro e crânio, arrancando uma orelha
e soltando faíscas no chifre. A fera urrou e se encolheu, cobrindo com as mãos os
buracos que o pintavam de vermelho.
Seu marido chegou a toda,
desferindo seu melhor golpe. Mas, apesar de ferida, a fera se virou com a
aproximação, e a folha do machado passou direto, pesada como uma guilhotina,
lhe decepando a metade da pata.
Irado, o monstro atacou
com suas garras bestiais, com uma porrada no rosto de Ezequiel que o fez girar
no ar – abaixo dele, a repugnante lama que os corpos pisoteados viravam – e
cair de cara. Inerte.
- NÃO!
Olívia já corria quando
engatilhou e disparou novamente, perfurando o maldito pelo braço e barriga. O
monstro fugiu depressa, tropeçando e escorregando no coto do pé.
- EZEQUIEL!
Arnaldo tossiu algo que
poderia ser seu sangue, ou os interiores liquefeitos de algum animal. Custava a
respirar.
Enquanto vencia os
últimos metros até Ezequiel, não queria pensar no pior, mas quando viu seu
límpido e escuro sangue se misturando na sujeira, arquejou.
- Não... Não... Ah Deus,
Não...
Olívia deu um suspiro
sufocado. Os olhos ficaram quentes e molhados. E quando abriu a boca para
chorar, de repente várias bolhas brotaram do sangue. Ela o virou imediatamente,
tirando seu rosto da imundice que ameaçava afoga-lo. Ezequiel tossiu com força,
expelindo mais sangue. Seu olho esquerdo fora arrancado junto com uma parte do
osso. Sua face retalhada da orelha ao canto da boca; expunha dentes e gengivas
onde havia uma bochecha barbuda. Para piorar, seu maxilar estava claramente
fora do lugar, permitindo-o apenas gemer. Seu único olho bom rolava loucamente
nas órbitas, desvairado em dor.
Então as lágrimas
arrebentaram. Sentia culpa por toda aquela desgraça. Afinal onde estava com a
cabeça ao decidir enfrentar o demônio? Seu marido estava à beira da morte...
- Olívia... – disse o
velho, e tossindo quase a cada palavra. – Se ele morreu deixe ele aí! Temos que
nos preparar, agora!
Com muito esforço desviou
o olhar para Arnaldo. Em pé, segurando o peito, ele apontava para o outro lado.
O monstro se prostrava
junto à arvore; mãos e testa encostados no tronco. Os símbolos chiavam alto,
queimando e soltando vapor. No alto da cabeça da fera, entre os chifres, surgia
uma fogueira azul.
No colo de Olívia,
Ezequiel começou a respirar depressa, e ela pensou que ele estava morrendo. Mas
seu olho a encarava com intensidade e força. Não estava se despedindo. Ele a deixou
sem ação, quando começou a se levantar e buscar o machado. Sua recuperação era mais
que impressionante, era milagrosa.
- Ele vai pagar por isso
– disse Arnaldo, fazendo cara feia para a condição do amigo.
Sua determinação parecia
fluir para ela. Por um momento perdera as forças e esperança para continuar, mas
agora não havia como desistir. Não quando seu marido continuava de pé, mesmo
todo fodido, e o único ferimento dela era um dedo quebrado.
- Droga! – Arnaldo lutava
com a motosserra para liga-la, sem sucesso.
- Vamos sair de perto
dele! Pensar em alguma coisa. – Disse ela, num surto de liderança atípico.
Não era mais tão difícil
galgar os animais podres; a adrenalina fazia bem seu serviço. Eles acabaram
ganhando cinquenta metros de distância em questão de segundos. Até mesmo
Ezequiel os alcançava; mesmo desequilibrado, corria com o machado em riste. Um
maluco sanguinário.
- É simples, Olívia –
começou o velho, arfando a cada puxada na corda de ignição – Fique perto... e
fora do caminho... enquanto o deixamos ocupado você...
- Cabeça e coração. É...
De repente a besta solta
um uivo, longo e poderoso. O chão começa a tremer e chiar, como se fervesse.
Não eram apenas as raízes dessa vez; as milhares de carcaças agitavam-se por si
só, emitindo uma cacofonia de cliques agudos que rapidamente preencheu o ar.
Estavam num mar de cadáveres
pululantes, e a sensação era de que uma onda iria arrebentar sobre eles.
Com um segundo uivo do
felino, os corpos arrebentaram de dentro pra fora, despejando um infinito número
de larvas do tamanho de polegares, que mastigavam tudo ao alcance de suas
pinças pretas claudicantes.
Uma onda de vermes cobriu
as pernas do grupo, mordendo e subindo nas roupas, não importava o quanto
sambassem. Ao redor deles apenas fileiras de costelas começavam a despontar do
mar de insetos.
Mesmo na confusão
escutaram claramente quando o monstro começou a andar. Ossos esmigalhados
marcavam seus passos.
Só então Olivia se deu
conta de que a espingarda estava novamente descarregada. Abriu o cano - seu
indicador era uma linguiça roxa, dolorosa - e retirou as cápsulas vazias.
Um rugido apavorante
transmitiu a destruição que a fera pretendia lançar sobre eles. Apressada, ela
encheu a mão de cartuchos novos, se atrapalhou no ato de encaixá-los e derrubou
vários sem conseguir colocar ao menos um. O monstro começou sua investida num
galope furioso, pulverizando o caminho. Já podiam ver um clarão azul rasgando a
névoa.
Tinha duas munições
restantes na mão, mas não tinha tempo para carrega-las, e nenhuma opção de
esconderijo em campo aberto. Então se viu mergulhando, sem pensar duas vezes,
mergulhou no ventre aberto à sua frente, maior que os demais – um cavalo -, e
ainda com alguma pele sobre o dorso. Aninhou-se no tórax repleto de vermes,
focada apenas em colocar as duas balas na arma. Do lado de fora Arnaldo
amaldiçoava a motosserra e Ezequiel mal se movia, espumando sangue.
Vermes e ossos choveram
sobre eles; o pesadelo chegava em carga.
A coisa rugiu mais uma
vez. Olívia colocava o segundo cartucho na espingarda.
Seu marido ergueu o
machado, preparando um golpe seguro na vertical. Estava iluminado, e seu olho
refletia o fogo azul que engolfava os chifres.
Olívia não saberia dizer o
quanto uma situação extrema era capaz de alterar a percepção de alguém, mas o
tempo realmente pareceu transcorrer mais devagar; a realidade tomando uma
riqueza de detalhes nunca vista.
O céu está cheio de ossos
e vermes, e uma bola de fogo com dois espigões passa por cima dela, na direção
de Ezequiel. Viu o monstro, todo músculos contraídos, concentrados em perfurar
seu marido; viu sua pata amputada pisar nela, prendendo seu braço; e por fim
viu seu homem, incapaz de prever o ataque cruzado no último instante, errando
totalmente e sendo transpassado.
Seu grito de dor se
afogou em sangue.
Ezequiel foi erguido pelo
chifre, à mercê da gravidade e do fogo na cabeça da besta. Vomitava um rio de
sangue, mas para um último golpe encontrou alguma força, descendo o machado a
morder as costas da fera, onde a arma ficou. Suas roupas começavam a pegar fogo,
o fogo normal.
Olívia via que a cabeça e
coração do inimigo estavam – além de fora de alcance – fora de ângulo; não os
acertaria nem se tivesse as duas mãos para mirar.
Foi a pior visão de sua
vida: O sangue caindo na boca do demônio, a lamber os beiços, enquanto a pele
de Ezequiel crepitava, fedendo a assado.
Deu tudo errado! Pensou. Merda!
A ponta peluda de um rabo
branco toca seu rosto – um apêndice totalmente ignorado até então - e seus
olhos sobem até encontrarem um ponto quase escondido entre a base do rabo e os
testículos avantajados, e totalmente ao alcance de sua arma.
O sangue de Olívia
ferveu. Em seu braço esquerdo se concentrou toda a sua força e pontaria; toda a
sua vontade de viver e de matar; em uma estocada audaciosa que ela não podia e não
iria errar.
Ela forçou o apertado orifício
a engolir metade da espingarda e disparou.
A explosão ribombou
dentro dele. O susto foi tamanho, que uma fortíssima contração deteve o recuo
da arma, prendendo a empunhadura móvel. Nesse ínterim a fera soltou um muito
doloroso arroto. Entre recuar e prender, a empunhadura se moveu, gloriosamente
engatilhando o mecanismo que iria foder aquela besta de uma vez.
BUM!
Com isso, os fortes
músculos anais finalmente cederam, e a arma saiu feito uma rolha tirada de um
barril; liberando uma torrente vermelha e pastosa no meio de sua cara.
Cega e engasgada, Olívia
ouviu os urros sufocados da fera e soube que seus pulmões estavam tão
estourados quanto suas tripas.
Mas o monstro continuava
matando Ezequiel, só por continuar em pé.
Tão bom quanto engatilhar
um segundo tiro dentro da coisa, foi ouvir as lâminas motorizadas de Arnaldo
ganharem vida de repente; acelerando e se aproximando.
A criatura enfim deu um
passo para o lado, liberando seu braço direito - que já não sentia – e
desviando de sobre ela a torrente de tripas liquefeitas. No instante seguinte monstro
e velho se chocaram.
Ela limpou os olhos bem a
tempo de ver Arnaldo serrando o bíceps do homem-onça, enquanto este fechava as
garras da outra mão em seu tronco, partindo uma costela atrás da outra como
gravetos. O enorme braço peludo despencou no chão como uma tora de madeira
podre. Arnaldo avançava mesmo com as perfurações no tórax, forçando então os
dentes da máquina a mastigar a lateral do monstro.
Olívia começou a sair da
carcaça e do meio dos vermes. A motosserra abria um talho fundo, se aproximando
da coluna. A fera caiu sobre um joelho, mas evitou o pior puxando o velho e arremessando-o
longe.
Ezequiel balançou de um
lado para o outro, estava preto de queimado.
Ela não precisou pensar
para agir; simplesmente agarrou o machado - ainda enterrado no monstro -,
ergueu-o bem alto com as duas mãos, e desceu-o o mais forte que conseguiu.
Acertou em cheio sua coluna robusta. A vértebra pareceu espatifar sob a lâmina.
As pernas do demônio se desligaram do corpo, derrubando-o de bruços.
E as costas do maldito
subiam e desciam.
Incapaz de aceitar que
ele respirasse, Olívia arrancou o machado da coluna e partiu para o pescoço,
golpeando e berrando, sem parar.
Silêncio.
Ficou estática. A boca
entreaberta. O coração doendo.
Arnaldo tossia. Era o único
som sob a Árvore da Morte.
O monstro jazia apagado.
Sua cabeça separada não queimava mais. Ezequiel continuava preso a ela, inerte.
Parecia bem morto. Tudo estava. Nem mesmo os vermes embaixo dele se moviam.
Seu coração parecia
morto.
Chorou por dentro pois
não tinha mais lágrimas.
Mas Ezequiel, seu eterno amor,
mais uma vez lutou pela vida, sorvendo baixinho um pouco de ar.
Algo estalou dentro dela.
Um trovão. Um raio azul de esperança. Tinha que agir depressa.
- Arnaldo! Consegue
andar?
- Não... – gemeu. – Acho
que... me fodi mesmo...
- Nada disso! Nada de
desistir! Levanta! Agora!
Enquanto convencia o
velho, Olívia puxou a cabeça do demônio e livrou Ezequiel do chifre. Shlop,
foi o som que o buraco fez. Então pegou os pulsos do marido e começou a
arrastar.
Arnaldo se levantou. Sua
respiração chiava, esguichando sangue entre os dedos que apertavam o peito.
- Me ajude – ofegou ela.
Poupando-se do esforço de
falar, o velho apertou o peito com mais força e pegou um dos pulsos de Ezequiel
com a outra mão.
Foi difícil.
Ela chutava o que
conseguia para fora do caminho, mas os ossos e vermes mortos invariavelmente se
acumulavam sobre os ombros e cabeça de Ezequiel. Como se ele fosse uma
vassoura.
Olívia pensava apenas em
chegar lá, mas na metade do caminho Arnaldo já ameaçava tombar para frente, e o
fez, faltando apenas um quarto da distância.
Não posso parar agora.
Eram no máximo quinze
metros até a beirada. Olívia rugiu. Reuniu forças que ela mesma desconhecia,
vencendo cada passo, cada metro. E por fim empurrou seu marido dentro do rio.
Voltou correndo até
Arnaldo se sentindo mais leve. Livre de sua maior preocupação; tinha feito tudo
o que podia por Ezequiel.
- Mais um pouco... –
dizia ela, sustentando Arnaldo pelo braço e cintura. – Falta pouco... – O velho
estava pálido. Tinha a expressão de um cadáver.
A luz azul no limite das
raízes era a linha de chegada da salvação. O rio na verdade era o caminho da
perdição, mas isso em nada importava.
Olívia empurrou o amigo
moribundo sem cerimônia e pulou atrás, afundando por completo nas águas
mágicas.
Morno.
Não. Não havia sensação
térmica. Havia paz. Muita. Disso se lembrava. Mas também havia esquecimento.
Ela se debateu e ganhou a
superfície. Encheu os pulmões. Tinha que se manter aflita; se manter
preocupada. Ou cederia à vontade de se afogar naquela água. Seu plano estava
funcionando? Estavam sendo curados, como sua perna fora?
Arnaldo boiava emborcado.
Apenas com as costas de fora. Ezequiel tinha pouco mais que o rosto acima da
água. Braços e pernas abertos. Metros de seus intestinos serpenteavam
livremente ao redor dele, mas não havia sangue.
Ela não sentia corrente,
mas a rio os carregava. Olívia sentia o sono tomando conta.
Os animais fantasmas os
observavam da margem. Pareciam mesmo cabisbaixos, apiedados com as pessoas na
água. Não deu atenção; seus olhos já perdiam o foco.
Era muito fácil boiar, e
pouco tempo depois seus olhos se fecharam. Estava quase dormindo. Quase. Ela imaginava
peixes de luz azul nadando numa imensidão branca.
Um ruído começou a se
insinuar em sua mente. O som despertava nela a visão do buraco negro, e antes
de reabrir os olhos soube o que iria acontecer.
Abria-se uma garganta sob
a plataforma de raízes. A água afluindo veloz pelos dois lados, de forma que todo
o rio era no fim engolido por ela. Os lábios cobertos de musgo seco; e dentes
de líquenes brancos balançando na entrada.
O pânico tomou seus
sentidos de assalto, expulsando o sono. O rio despencava ruidosamente, como se
o buraco gritasse. Era a espiral de novo. Puxando-a para dentro. A espiral
descendente; e dessa vez todos iriam para baixo com ela. Para as
profundezas. Não havia nada que pudesse impedir isso.
Ela assistiu impotente
enquanto ganhavam velocidade. A bocarra parecendo se abrir para eles. Em seu
interior, as raízes iluminadas e entrelaçadas. Ezequiel rodopiava nas águas
agitadas, e no último instante, foi sugado de uma vez para dentro,
desaparecendo. Olívia logo seria engolida também.
À merda aqueles peixes. Pensou. Não vou
dormir.
Assim que entrou na boca,
despencou, carregada por um túnel estreito e quase na vertical. As raízes formando
o teto rapidamente se afunilaram e desapareceram em solo pedregoso, e este foi
se tornando mais rochoso até o grupo ficar totalmente envolto por pedra.
Desceram, ou caíram, por
talvez um minuto. Então começou a ouvir a água se chocando lá embaixo. Parecia
que iriam bater em cheio na pedra, ou serem triturados por ela. Olívia submergiu
de uma vez, sentiu a dormência instantânea, sua desistência involuntária, mas
para sua total surpresa seu corpo foi lançado bruscamente para fora. Abriu os olhos
em plena queda. Estavam caindo dentro de uma galeria subterrânea. Uma caverna imensurável.
Chegou a notar alguma luz arroxeada ao longe, mas um extenso lago azul
brilhante clamava seu corpo dezenas de metros abaixo.
Ela esperou o impacto.
Só que não aconteceu. Sequer
houve dormência. Simplesmente estava lá de novo.
O sonho branco.
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