Fonte
- Todos os cães estão nos
encarando... – disse Olívia. Ela vinha percebendo isso desde que eles saíram da
loja de Arnaldo. Era o segundo grupo de vira-latas a parar completamente o que
estava fazendo e acompanhar a passagem da picape com a cabeça.
- Quê? Cães? – Perguntou
Arnaldo, abrindo os olhos e encerrando a prece que fazia. Suas mãos cruzadas
sobre o cano do rifle entre suas pernas.
- Cavalos – disse
Ezequiel apontando mais a frente para um terreno cercado onde alguns equinos
eram vendidos. O vendedor tentava sem sucesso impedir um cavalo jovem e
excitado de montar em uma de suas éguas. Estavam quase na frente da cerca quando
o garanhão se equilibrou sobre a fêmea e a penetrou. Então o movimento parou de
uma vez. Suas longas cabeças se viraram juntas para a picape e passaram a segui-la.
A posição do coito congelada.
Os três não puderam
evitar olhar de volta. No fundo daqueles globos pretos e acusadores. Como se
não fossem eles os safados.
Cinco segundos depois
Arnaldo procurava mais animais por onde passavam. Estava pálido.
- EI, EI, EI! Isso é
coisa dele não é? Aconteceu com o
cachorro de vocês. E esses bichos... como...
Olívia abriu a boca para
falar, mas Ezequiel disse exatamente o que ela pensava.
- Ele sabe. Vamos ter problemas com os animais.
Ele sabe. E sem querer Olívia já revivia mais uma vez a despedida em
frente à casa de Maria. E não parece ter
medo de nós. Talvez até nos ache engraçados.
- Ele sabe de que? – Perguntou o velho.
Ezequiel balançou a
cabeça.
- O que ele não sabe...
- Mas que merda! Fale
direito!
- Já chega! – Gritou ela.
– Devíamos estar discutindo como vamos encontra-lo!
O carro saiu da cidade e
as casas deram lugar às plantações. Soja e cana-de-açúcar apareciam
regularmente, mas era o café o forte da região. As fileiras de arbustos
cafeeiros se estendiam por uns dois quilômetros, até onde a floresta começava.
Não importava em que direção olhava, ela sempre estava lá dominando o
horizonte. O reino da criatura.
O demônio podia estar em
qualquer lugar e em lugar nenhum.
- Eu tive uma ideia –
disse Ezequiel, quebrando um longo silêncio que fedia a cérebro queimado. – Não
é excelente, mas é um começo.
- O que vamos fazer?
- Da floresta inteira, ele deve ter escolhido o local de mais
difícil acesso. Minha ideia é subir e ver as coisas de cima. Só então decidir o
próximo passo.
Arnaldo franziu o cenho.
Olívia pôde ouvi-lo respirar pesado.
- Você não está pensando
em subir a serra, está? Quer observar a droga da paisagem enquanto um demônio
faz o que quiser com a minha mulher?! Não temos escolha, temos que entrar logo
nessa mata e enfrentar o que quer que seja!
Ezequiel lhe deu um
sorriso torto em resposta e desacelerou a picape. Parando em seguida.
- Quer tanto morrer,
velho? Acha que não vamos conseguir?
- Por que paramos? –
Perguntou Olívia.
Ele piscou para ela,
abriu a porta e se afastou alguns passos. Arnaldo desceu do veículo soltando um
palavrão e outro e o seguiu. Logo estavam amaldiçoando um ao outro e urinando
na beira da estrada.
Olívia relaxou. Por um
momento pensara que os dois iriam se desentender. Tinha se esquecido do quanto
àqueles homens discutiam.
Ela olhou para o céu e se
perguntou quantas horas eles tinham até o anoitecer.
Ezequiel e Arnaldo
voltavam para o carro quando o rebanho apareceu, bloqueando a estrada quase um
quilômetro à frente. Havia algo entre vinte e trinta bovinos, e nenhum possuía
intenções assassinas. Com certeza estavam apenas sendo transferidos de uma
fazenda à outra.
A quem ela estava
enganando?
- Ezequiel! – Gritou ela,
mas ele já estava subindo na caçamba e gritando ordens.
- Dirija! Vamos ter que
passar no meio dessas vacas! Cadê teu rifle, velho?!
Arnaldo rebolou ao redor do
carro o mais rápido que pôde e pegou sua arma pela janela. Usou o braço de
Ezequiel para subir na traseira.
Olívia fez a picape
andar. As armas foram apoiadas no teto.
Ressoou o primeiro
disparo. Uma vaca tremeu e sentou nas ancas. Ela ouviu o ferrolho sendo puxado
e o cartucho vazio caiu sobre o capô. O rebanho continuou andando normalmente.
- Quando chegar perto
pare o carro! Precisamos de tempo para atirar nelas!
Ela imaginou que outro
carro poderia chegar logo, e então as pessoas tentariam entender o que estava
acontecendo. Talvez realmente entendessem e os ajudassem...
Outro disparo. Dessa vez
um animal foi ao chão, no que foi pisoteado e deixado para trás.
Olívia olhou pelo
retrovisor com uma ponta de esperança...
... e percebeu que não
tinham tempo de parar o carro.
- OS CAVALOS ESTÃO VINDO!
– Gritou.
Arnaldo imediatamente
xingou suas mães equinas.
- Ainda estão longe –
gritou Ezequiel. – Se concentre nas vacas!
A parede viva foi
crescendo na direção deles e a picape avançou atirando. Faltavam quinhentos
metros, e Olívia sentia cada vez mais dificuldade em regular o pé do
acelerador. Se pisasse fundo destruiria o carro em toneladas de carne e
arremessaria os homens longe. Se não o fizesse, logo estariam cercados.
Faltando trezentos metros,
começou a reduzir bastante a velocidade. Após nove ou dez vacas abatidas o
bloqueio parecia apenas um pouco menor. Percebeu com desespero que sua maior
preocupação se tornaria realidade muito breve; era inevitável que os cavalos os
alcançassem.
Pelo retrovisor viu dois
deles chegando depressa e um terceiro bem mais atrás, sendo atrasado por uma
carroça que puxava. Os cascos eram audíveis, estalando no asfalto. Ezequiel e
Arnaldo se ocupavam em munir os rifles.
- SAIAM DA FRENTE VACAS
MALDITAS!
Arnaldo recomeçou a disparar
quando estavam a duzentos metros dos bovinos. Ezequiel deixou seu rifle
carregado para ele e pegou o machado. Ele o balançava quando o primeiro cavalo
os alcançou.
Pelo retrovisor Olívia
acompanhou cada segundo de tensão.
O garanhão surgiu com seu
trote frenético, lançando os enormes dentes sobre seu marido. Ezequiel errou o
primeiro golpe e atingiu a picape de raspão. O cavalo mordeu sua barriga e
puxou. Ezequiel apoiou os pés na beirada para não cair, agarrou uma orelha do
animal, e desferiu um golpe violento na em sua nuca, fazendo-o desabar em uma
cambalhota. Morto.
Quando ele se virou ela
percebeu que por sorte sua barriga estava intacta sob a camisa rasgada. O rosto
dele porém não denotava alívio.
- HÁ CACHORROS NA
CARROÇA! PASSE POR CIMA DESSAS VACAS!
Eram menos de cem metros
até as vacas, mas quando ela pisou no acelerador, alguma coisa bateu na lateral
direita do carro com um estrondo, fazendo as rodas de trás deslizarem e
diminuindo bastante velocidade em que estavam. Num relance Olívia viu as pernas
de Arnaldo passando por cima da beirada, e freou, deixando-o caído no asfalto dez
metros atrás.
Após ter dado um coice na
picape que derrubou Arnaldo, o segundo cavalo já estava sobre ele, prestes a
pisoteá-lo no chão. Ezequiel saltou sobre a beirada com o machado levantado e o
acertou nos quadris. O animal relinchou e coiceou de volta, arremessando o
machado para longe de suas mãos. Arnaldo tinha caiu junto com seu rifle, e com
um tiro desesperado estourou a cabeça do bicho.
Olívia esperou que retornassem
e acompanhou a aproximação dos animais. As vacas haviam começado a trotar, e
tinham pouquíssimo tempo antes da carroça com seus passageiros caninos os
alcançarem.
Enquanto eles se jogavam
na picape, ela percebeu que Ezequiel segurava a mão esquerda junto ao corpo. Já
Arnaldo tinha o cabelo branco de algodão empapado de sangue, que escorria pela
testa.
- VAI! VAI! VAI! –
Gritaram os dois.
Os pneus cantaram. As
vacas perceberam a aproximação, e abaixaram as frontes como touros. Aquelas
malditas testas ossudas conseguiriam pará-los? Era muito difícil o carro passar
por cima daquilo, mas valeria a pena se algumas morressem.
Humanos e animais se
prepararam para o impacto.
A primeira coisa que
sentiu foi o estrondo seguido por uma intensa trituração de ossos, conforme o
para-choque avançava sobre três das vacas. No instante seguinte seu corpo
deslizou do assento e seu rosto foi de encontro ao volante. Desnorteada e com a
boca sangrando, ainda teve tempo de pensar em como fora burra de esquecer o
cinto de segurança, então notou a carroceria chacoalhando e algo como uma
guerra começar na parte de trás.
Ezequiel e Arnaldo
rugiam, distribuindo morte para as vacas que os atacavam dos dois lados. Alguém
tinha que lidar com a carroça cheia de cães. Estava prestes a abrir a porta
quando uma mandíbula selvagem atravessou o vão da janela e se fechou a
centímetros de sua bochecha. Ensandecida, a vaca continuou tentando alcança-la,
e no centro de seus olhos ela viu duas estrelas azuis, até que uma pesada
lâmina rachou o topo de seu crânio, esguichando sangue dentro da cabine e sobre
Olívia. As estrelas morreram. O animal revirou os olhos e escorregou com a
língua para fora, bloqueando a porta com seu corpo.
Olívia subiu na janela e
se jogou na caçamba, caindo de joelhos sobre uma profusão de sangue e munições
espalhadas. Tinha poucos segundos. Pegou o rifle que encontrou e percebeu seu
ferrolho puxado e a câmera vazia. Era o de Arnaldo. Tremendo enfiou um cartucho
nele e engatilhou. E como não havia tempo, apenas levantou e disparou. Ela
atingiu o peito do cavalo, que bufou e continuou avançando, desgovernado. Pelo
menos ela o tirara dos trilhos.
Livrou-se do rifle e
pegou sua foice. Umas cinco ou seis vacas ainda eram rechaçadas enquanto
tentavam subir na picape. Ela estava pronta para ceifar alguma coisa quando o
cavalo chegou como um trem e bateu em cheio na traseira, quase derrubando todos.
Três cães passaram voando por cima deles e caíram após o carro, enquanto um
quarto rodopiou baixo e atingiu a parte de trás da cabine, caindo entre os
homens.
Gritando, Olívia desenhou
um arco vertical com sua foice que pregou o cão na lataria. O animal morreu
quando a lâmina foi arrancada de seu torço. Subiu então no teto da picape, onde
achou que lutaria melhor contra os cães, e balançou sua longa arma em
preparação.
Foi o tempo dos cães restantes
se levantarem e atacarem, saltando sobre as vacas mortas e subindo no capô em
uma velocidade absurda. Olívia desferiu um golpe lateral que empalou o cachorro
mais próximo, mas permitiu aos outros dois saltarem juntos sobre ela. Com o
cabo da foice bloqueou uma mordida que arrancaria suas tripas, mas o terceiro
cão conseguiu cravar os dentes em sua perna, logo acima do calcanhar, e puxou.
Caiu de costas no teto,
sentindo o baque tirar o ar de seus pulmões. Sua foice voou de sua mão com um
cão empalado na lâmina e outro abocanhando o cabo. O outro a arrastou para o
capô, onde ela se segurou e começou a chuta-lo. Aquela malditas presas se
recusavam a soltar sua carne.
Pelo canto do olho viu
Ezequiel matar a última vaca do seu lado e se preparar para salvá-la. Porém
hesitou com Arnaldo gritando de dor.
- TIRE ELE DE MIM!
Ezequiel jogou um rifle
para ela por cima do teto e foi ajudar o velho. Ela teve que soltar o capô e
pegar a arma, sendo então arrastada para o chão sobre as vacas mortas. Ela se
deixou levar e empurrou o cano da arma pelo canto da boca do cachorro. Disparou
com vontade, fundo em sua garganta, espalhando-o pela estrada. Ela ouviu o
lamento do último cão, que atacara o velho. Seus ganidos de dor eram entrecortados
por rosnados, até que a lâmina do machado encerrou aquilo também.
Estava acabado.
Ela deitou a cabeça em
uma perna bovina e fechou os olhos. Nos segundos que se seguiram tentou apenas
respirar, mas outras sensações vieram; como o calor de seus ferimentos e o
cheiro pungente de sangue no vento.
Ezequiel ajudou-a a se
erguer. Ela olhou em volta para quase meia centena de corpos espalhados na
estrada e se sentiu horrível. Ela amava os animais. Especialmente as vacas,
sempre tão neutras e pacíficas.
Agora estavam todos
cansados e machucados. Arnaldo batera a cabeça e fora mordido no braço,
Ezequiel quebrara toda a mão esquerda ao levar um coice e ela só conseguia
andar mancando, e com muita dor. Era de se esperar que desistissem... mas não
existia tal opção. O demônio sabia das intenções deles. Não havia lugar seguro
para o grupo.
Com dificuldade
arrastaram algumas vacas do meio da pista (os três juntos para cada corpo) e
seguiram viagem. Arnaldo ao volante. Todos permaneceram calados com suas dores
e pensamentos.
Quinze minutos se
passaram. A estrada se tornou mais inclinada e fez uma curva acentuada para a
esquerda.
Agora estavam realmente
subindo.
O caminho da serra, além
de muitas curvas, possuía árvores altas em ambos os lados da pista, tornando
difícil de observar os arredores. Precisavam encontrar um lugar onde pudessem ver
o horizonte e a floresta claramente.
E esse lugar era a ponte.
Era uma construção
pequena; apenas quinze metros de aço e concreto ligando as margens de uma
antiga falha no relevo.
Ele estacionou pouco
antes da ponte, e ela ficou observando os homens descerem do carro. Ezequiel
correu logo para a beirada e começou a olhar em volta. Arnaldo o seguiu sem
qualquer pressa.
Olívia desceu com
cuidado. A perna esquerda protestou com o esforço, mas do lado de fora não
fedia tanto a sangue. Agora estava livre para se incomodar com o cheiro de
sangue e suor em seu corpo, e em como sua pele estava grudenta.
Mancou até a grade de proteção
e viu o que eles viam. Um vento frio e constante esvoaçava seus cabelos.
Nada.
Estavam olhando para a
maior parte da área de influência do demônio; toda a floresta que cercava a
cidade e propriedades rurais. Eram quilômetros além da conta, de um verde
denso, com colinas, e cercado por montanhas baixas. E das montanhas, nuvens
carregadas se deixavam levar pelo vento. A região em breve estaria quase
totalmente na sombra... e talvez na chuva.
Ezequiel não tinha
desanimado ainda.
- Deve haver alguma coisa...
Arnaldo puxou os próprios
cabelos.
- Não tem nada pra ver
aqui! Era pra gente estar lá embaixo atrás daquela coisa!
Ezequiel respirou fundo.
— Nós não temos ideia de
onde procurar.
— Quem liga?! Ele vai tentar nos pegar mesmo!
O tom da conversa já
indicava onde ela iria parar.
— Ou talvez ele prefira
ver TODAS AS COBRAS E ONÇAS DAQUI ATRÁS DO NOSSO RABO! — Respirar fundo não
tinha funcionado com ele.
Arnaldo rosnava:
— Eu não tenho medo de
malditas cobras e onças — dizia, fechando os punhos.
— Velho SUICIDA! — disse
Ezequiel.
— É, eu CANSEI! Cansei
dessa merda! Eu quero MORRER!
Um leve tremor
subitamente percorreu seus ossos, de baixo pra cima. Em seguida, um som como de
um trovão abafado ecoou pela serra. A rocha se partiu em algum lugar bem acima
deles. E quando contemplaram o alto, tiveram seus olhos iluminados por milhares
de rápidas e cintilantes estrelas azuis. Olívia sentiu que estava, de fato,
dormindo e sonhando com aquilo. Um sonho azul e cristalino. Algo impossível de
se acreditar que está vendo, mas tão lindo que te fazia não pensar nisso. Como
um sonho, era tão fascinante que a mente simplesmente se deixava entreter.
As estrelas eram a
borrifada de água que uma nascente fizera antes de despejar uma torrente de
brilhante água azul montanha abaixo. Encharcando as árvores com luz.
Eles assistiram com grande
expectativa a água finalmente alcançar a falha sob a ponte, se transformando em
uma volumosa e potente cascata que iluminou a área. As árvores no fundo da
falha simplesmente se soltaram do solo e foram levadas pela água, até magicamente
se enterrarem dezenas de metros abaixo, delineando o curso. O rio não perdeu
velocidade alguma modificando a natureza, e como uma serpente de luz, terminou
de descer a serra e seguiu pela floresta.
Arnaldo foi o primeiro a
dizer algo:
— MINHA SANTA MÃE! Isso é...
— É um sinal – disse
Ezequiel, dando um sorriso amarelo.
— ELE ESTÁ AMALDIÇOANDO
TODA A TERRA!
Ver novamente um rio de
luz azul fez Olívia reviver a noite em que fora capturada; como fora facilmente
enganada e atraída pela ilusão. Não podia acreditar que estava acontecendo tudo
de novo.
E não era só isso que a
preocupava.
— Você... — ela se
aproximou do marido enquanto pensava em como ia dizê-lo.
— Já esperava que ele nos
daria um sinal? Num lugar como esse? Como?
Ezequiel a olhou com
sinceridade e a contou:
— Eu acho que já
estaríamos mortos se ele quisesse... se ele ainda não nos quer mortos, então
quer que o encontremos.
Arnaldo riu.
— Há! Então vamos mesmo
todos morrer.
— Não sem lutar —
respondeu Ezequiel.
— Vamos fazer exatamente
o que o que ele quer — disse Olívia.
— E não temos escolha.
Eles invariavelmente
abaixaram as cabeças e ficaram em silêncio.
- É isso aí, chega de
papo – Num instante Arnaldo tinha substituído sua melancolia por resignação. –
Vamos acabar logo com isso. Tem uma descida um pouco mais à frente que vai nos
tirar da serra. Mas vamos ter que andar uns dois quilômetros. Lá embaixo ela se
afasta do rio.
Os três se olharam nos
olhos e concordaram.
De volta à picape,
Arnaldo os guiou aos seus sombrios destinos.
Cinco minutos depois,
encontraram uma placa quebrada indicando a descida mencionada por Arnaldo.
Olívia não conhecia tal caminho, e descobriu uma estrada de terra íngreme e
esburacada, tão sinuosa quanto o rio. Arnaldo dirigiu apressado, metendo as
rodas em todos os buracos que podia. Ninguém reclamou. Nem mesmo Ezequiel ao
bater a cabeça na porta. Talvez estivessem sentindo a mesma sensação de medo e
excitação que ela.
De vez em quando viam as
árvores que margeavam o rio. Iluminadas pela luz da água, pareciam emitir seu
próprio brilho azul, que percorria as copas em ondas lentas e pulsantes.
A luz azul do demônio
transformava tudo que tocava. Era hipnotizante mesmo à distância.
Como na noite que eu... sumi por sete dias.
Perderam-nas de vista
quando a picape mergulhou nas sombras da floresta, no final da descida. A
partir dali a estrada os levaria na direção oposta à do rio, então Arnaldo
puxou o carro para a esquerda, atropelando alguns arbustos, e dirigiu até onde
as árvores permitiam antes de ficarem próximas demais. Dezenas de metros fora
da estrada.
Eles logo perceberam que
não tinham sido os primeiros a chegarem ali.
A caminhonete da
delegacia estava parada a menos de trinta metros deles. Era possível ver o teto
e a sirene por trás de um pequeno aclive cheio de arbustos.
- Não é possível! – Disse
Olívia. – Gomes está aqui?!
- O que aquele safado
está fazendo? – Disse Ezequiel – Vamos precisar ter ainda mais cuidado.
Desceram da picape e,
fazendo o mínimo de barulho possível, se apressaram em pegar tudo. Ezequiel não
podia mais atirar e acabou se tornando o burro de carga; levava o machado na
mão direita e a bolsa da motosserra pendurada nos ombros, com a presilha de seu
rifle presa à alça. Arnaldo levava seu próprio rifle e metera as balas
restantes no bolso. Olívia carregaria apenas a foice.
Ninguém viu os dois pares
de olhos de luzes azuis, brilhando na vegetação com avidez.
— Eu vou ver a
caminhonete — disse Arnaldo. Fiquem aqui.
— Com esses cartuchos
chacoalhando nos bolsos? — perguntou Olívia — Me empresta seu rifle. Eu vou.
— E se ele estiver lá?! —
perguntou Ezequiel.
— É melhor ele tomar
cuidado.
Olívia se aproximou por
trás do aclive e conseguiu ver a caminhonete inteira. Os vidros estavam
levantados, então era provável que estivesse trancada e vazia. Com cuidado ela observou
o retrovisor direito procurando o reflexo de Gomes no espelho. Nada, então
continuou agachada até ficar embaixo da janela do passageiro.
Levantou com o rifle na
frente dos olhos. A boca do cano seria a primeira coisa que a pessoa veria
se... houvesse alguém ali.
Logo seu corpo relaxou e
seus olhos foram atraídos para o longo objeto deixado sobre o banco.
Levantou a mão e acenou
para eles virem. Sorria amplamente.
Antes que chegassem,
virou o rifle nas mãos e quebrou a janela com a coronha. Arnaldo se assustou.
— Droga, mulher!
Ezequiel olhava alarmado
para a floresta.
— Não precisamos mais ter
cuidado – disse ela abrindo a porta por dentro e removendo a espingarda de cano
duplo no suporte de teto.
— Como Gomes é burro! —
exclamou Arnaldo.
— Foi muito fácil —
comentou Ezequiel. — Não acham estranho?
— Acho — disse Olívia —,
mas com certeza é melhor do que deixarmos com o delegado. Acha que pode ser uma
armadilha?
Ela encontrou uma caixa
de munições sob o banco, e após encher os bolsos com as capsulas vermelhas
guardou o restante na bolsa da motosserra.
— Bom, o cartucho poderia
estourar na sua cara... mas não é nisso que estou pensando.
Arnaldo pegou a
espingarda e a dobrou. Havia um cartucho em cada buraco.
— Esse calibre é alto —
disse, olhando-os com um princípio de sorriso. — Explode as coisas... Em que
está pensando Zeca?
— Eu acho que faz parte
do plano dele.
— BAAH! — gritou Arnaldo
— Foi você que nos levou até o sinal dele, então não me venha com essa merda.
Já estou com merda até o pescoço. Vamos embora. Pode levar meu rifle Olívia?
— Claro — respondeu, e
olhando para Ezequiel disse: — Ele está certo. É tarde demais pra ficar
pensando que é tudo plano dele. E só
estamos aqui por sua causa.
— Tá, tá. Já entendi. Só
estou dizendo.
Por um instante achou que
iria ficar desconfiada dele, então começou a andar para não pensar no assunto.
Tinha que afastar esse pensamento para não começar a enlouquecer.
Eles andaram em fila por
uma floresta cada vez mais escura e fria. As nuvens cinzas que tinham visto
enquanto desciam a serra finalmente os cobriram com suas densas sombras, e eles
se tornaram habitantes da penumbra. Aquele estado transitório da luminosidade
onde as cores desbotavam e morriam.
Não se passaram dez
minutos até a dor em sua perna ocupar todos os seus pensamentos. E não se
passariam mais dez até ela achar a dor insuportável. Ela descia para o
calcanhar, transformando-o em uma engrenagem enferrujada. Sabia que os outros
não estavam melhores. Ela se deu conta de que Arnaldo gemia a cada trinta
segundos. Por outro lado, Ezequiel não emitia som algum. Olívia estivera
observando sua mão inchar e mudar de cor naquela tarde, e se não estava doendo
horrores, ou ele fingia muito bem, ou ela estava dormente.
Relâmpagos cortaram as
nuvens, imprimindo em sua retina algumas fotografias brancas das costas de
Arnaldo e da floresta à frente. Naqueles flashes de luzes, as sombras das
folhas das árvores pintaram um mosaico preto e branco no chão, e para ela as
sombras formavam um caótico tabuleiro de xadrez. Porém o instante passou, e a
escuridão lhe pareceu maior que antes.
Arnaldo se virou,
pretendendo falar alguma coisa, mas suas palavras desapareceram quando os
trovões rasgaram o ar ao meio.
— O rio está lá! —
repetiu, e ela viu a luz azul transparecer em alguns pontos distantes.
O rio.
Nesse momento Ezequiel a
empurrou, obrigando todos a seguir caminho.
— Vamos! Vamos! Vamos! Tem
alguma coisa lá atrás! Parece longe, mas... é melhor a gente correr! É melhor
eu estar errado sobre que animal faz isso!
Olívia e Arnaldo sentiram
o medo em sua voz, mas a curiosidade travou suas pernas até que ouvissem o som.
Eram
lamentos, muitos, como rugidos de tristeza. Eles choravam para a floresta
inteira. Não soavam tão ameaçadores, mas não havia como se enganar sobre que
boca fazia aquele som. Uma criatura que já encontrou muitos homens andando
sozinhos, e muitos deles se ajoelharam e clamaram por Deus, enquanto suas
bexigas se esvaziavam, pouco antes de serem feitos em pedaços.
Olívia estremeceu. A sensação de urgência
tomou cada nervo de seu corpo. Obrigando-a a transformar seu desespero em
movimento.
Algo semelhante ocorreu com os outros. Arnaldo
gritou alguma coisa sobre ser mastigado, e eles correram com tudo que tinham.
Miravam as luzes azul-elétrico, difusas pelas árvores
Tudo ao redor e atrás
deles estava muito escuro, como se fosse quase noite. Aquela luz à frente
parecia ser a única esperança.
De repente os rugidos
ficaram mais altos e mais rápidos. Soando menos como um lamento e mais como uma
sentença de morte. Era fácil imaginar aqueles felinos gigantes alcançando-os
num instante com sua potência assassina, e dilacerando-os no frenesi sanguinário
que o demônio causava aos animais.
Começou a chuviscar. Não
que tenha dado muita atenção a isso. Sua perna gritava. Seu coração batia como
um tambor. Seus pulmões berravam... E tudo que ela ouvia era o triste ódio das
onças.
— ESPEREM! — gritou
Ezequiel, esbaforido. Ela sabia que a motosserra não era nada leve.
— Por que estamos correndo?!
Como o rio vai nos salvar?!
Arnaldo gritou de volta,
sem parar de correr:
— São muitas, Zeca! Nossa
única chance é conseguir atravessar o rio!
— Esses gatos não têm
medo de água, porra!
Não pararam de correr.
Mais trovões racharam o
céu, e a água acumulada despencou de uma vez sobre eles. A chuva pesada inundou
a floresta com sua cacofonia de infinitas gotas batendo em infinitas folhas.
Ela se deu conta de que
não ouvia mais as onças. Tão rápido quanto começara, acabou. Como um sonho.
Faltavam algumas centenas
de metros até o rio e as árvores transformadas que o margeavam. E suas luzes
eram como um incêndio gelado cortando a floresta. Queimando até o céu como
incrível fogo azul. E ao invés da fumaça preta e tóxica, viam uma tênue névoa
azulada se espalhando entre as árvores.
Daqui em diante tudo vai ser diferente. Pensou.
Eles saíram da aparente
escuridão e avançaram desembestados para dentro da atmosfera cada vez mais azul.
Estavam nitidamente exaustos. Ezequiel tinha os olhos injetados e o rosto brilhando
de suor. Arnaldo gemia a cada três metros que percorriam. Para Olívia parecia
que sempre havia uma protuberância de raiz disposta a torcer seu tornozelo
enfraquecido.
Suas roupas lhe aderiram
a pele e ela percebeu que em minutos começaria a tremer de frio; assim que o
sangue esfriasse. A chuva também tinha feito as onças silenciarem.
Tenho que parar de pensar assim. As onças pararam porque ele quis. Estava apenas nos apressando. Nos obrigando a correr para o rio.
O rio dele.
Estavam quase lá.
Agora podiam ver que o
rio se desenrolara pela floresta como um tapete de luz líquida, com três ou
quatro metros de largura, e sabe Deus quanto de profundidade. Parecia
deslocado, como se não pertencesse àquele lugar. E essa sensação Olívia
atribuiu ao fato de não haver qualquer desnível nas margens. Isso confundia a
visão.
A superfície radiante e tremeluzente
da água, sempre no mesmo nível do solo, era como um espelho entre dois mundos,
e se ela o atravessasse, supôs, entraria no mundo feito de luz azul onde todos
os rios eram como aquele.
Olívia se sentiu tentada
a olhar seu reflexo na água. Imaginava se poderia ver a si mesma transformada
em luz.
Um rosnar grave e
profundo tirou-a de seus devaneios, e os três se viraram para o que pareciam
ser duas pequenas estrelas azuis flutuando atrás das árvores, a menos de um
metro do chão. Podiam enxergar muito melhor ali, e apesar de terem certeza que
naqueles olhos de luz, a carnificina brilhava, não podiam ver a boca que
rosnava, tampouco o corpo que retesava os músculos por antecipação.
Dois pares de estrelas
surgiram a poucos metros de cada lado do primeiro. Seus rosnados enchendo os
ouvidos.
As onças se adiantaram.
Seus olhos de estrelas deixaram rastros de luz azul pairando no ar.
Ofegantes, andaram de
costas, pisando com cuidado. Sabendo instintivamente que elas atacariam juntas assim
que corressem ou dessem um tiro. Faltavam menos de vinte metros até rio.
E o que diabos iriam fazer? Nadar na luz até o outro
lado?
Enquanto recuavam, mais pares de estrelas
saltaram da inexistência. Uma sucessão interminável de feras abria os olhos por
toda a parte.
Como as luzinhas que me atraíram da primeira vez.
— Vão nos cercar se não
chegarmos no rio logo! — Disse Arnaldo. Mantinha a poderosa espingarda abaixada
enquanto andava, pronta para ser usada.
— E depois? — Perguntou Olívia.
Estavam passando pelas
árvores mais próximas da água. O grave rosnar ficava cada vez mais alto.
Impaciente.
— Esqueçam os rifles, a
munição molhou. Diabos! Largue isso Olívia!
Eles chegaram à margem de
costas coladas. Ela soltou as armas e a espingarda foi empurrada em suas mãos.
Mais balas. Pensou. Seu olhar disparando freneticamente entre os três pares
de luzes flutuantes mais próximos. Os bolsos da calça estavam cheios de
cartuchos para aquela arma.
Mas não há tempo! Não há como! São dezenas!
Arnaldo havia tirado a
motosserra da bolsa e se preparava para puxar a corda de ignição. Ezequiel
defendia seu lado com as pernas bem abertas e o machado curto em riste. Acima
do rio a chuva brilhava multiplicando a misteriosa cor do demônio.
Três feras avançaram, de
repente cada par de estrelas ganhou uma cabeça iluminada, e as cabeças ganharam
corpos logo em seguida. Não tinham qualquer substância sob os contornos
luminosos que desenhavam sua pelagem cheia de manchas, e deixavam um rastro
embaçado no ar, fantasmagórico.
Vou morrer.
As onças mergulharam pelo
ar pelo que pareceu uma eternidade. O tempo ficou pastoso, se arrastando como
os rastros de luz. Ela levantou a espingarda com a mesma lentidão, e quando a
onça abriu as garras, prestes a abraça-la e rasgar seu pescoço, os olhos dela
se fecharam e a espingarda detonou a munição.
Os três gritaram e
lutaram.
Quando tornou a ver,
ouviu sua voz estrangulada, e seus últimos gritos escaparam antes de serem
sufocados pelo sangue que jorrava ruidosamente. Levou a mão ao pescoço.
Intacto.
À sua frente, no fim de
um arco de luz que se esvaía no ar, uma das onças arrancava o rosto de Ezequiel
a dentadas. O som era horrível. Porém seu marido tinha se tornado um ser de luz.
Era outra surreal aparição luminosa.
Como espíritos.
— ... ?
Ela se virou, alheia as
outras onças que se aproximavam, e então entendeu.
Olhava para a Olívia que
recebeu um abraço e teve a garganta arrancada. Sua gêmea de luz, ainda tremendo
sob a fera. E ao lado dela, o verdadeiro Ezequiel, olhando petrificado sua
própria versão de luz ser devorada.
— Saia de cima! — gritava
Arnaldo em pé, atravessando a onça com a moto-lâmina e sendo ignorado.
Presas de luz e vento
entraram em sua coxa logo acima do joelho — ela ouviu o tecido da calça e a
carne cedendo sem ceder de verdade — e outra desesperada Olívia de luz foi
puxada de dentro dela, gritando a plenos pulmões o nome do marido enquanto era
arrastada. Foi quando uma segunda onça mordeu o lado da barriga, abrindo-o. As
onças trocaram apenas alguns rosnados e começaram a disputar os órgãos dela. Sua
cópia continuou respirando. Olhava para os lados com a face da morte. A cabeça
e os braços não sabiam o que fazer e se agitavam de forma incoerente.
As onças fantasmas fluíam
sobre eles incessantemente, criando e destruindo cada vez mais versões de luz. As
bestas corriam e matavam por toda a parte, chegando a disputar as vítimas em
violentos cabos de guerra onde os cabos sempre se partiam. Em instantes todo o
espaço na margem estaria preenchido com os rastros luminosos do massacre.
A cabeça de Ezequiel
despontou de trás de uma onda de luz e Olívia o chamou o mais alto que pôde, se
vendo completamente abafada pelos gritos de excruciante dor que as muitas outras
Olívias sofriam. Aqueles gritos eram
bem mais altos que todo o resto, e convergiam para uma espiral em sua cabeça, deixando-a
tonta.
Múltiplas faixas se
cruzavam e se sobrepunham de maneira enlouquecedora. Através delas os corpos de
luz brilhavam mais forte, gladiando-se. Os corpos de verdade como o dela eram
engolidos e desapareciam.
Um redemoinho de dor
indescritível crescia e tomava forma em sua imaginação. Centrifugando cada vez
mais sofrimento em suas insanas correntezas. Sua cabeça girava quase no mesmo
ritmo. Fechou os olhos, tentando fugir, mas continuou vendo e ouvindo as
Olívias sendo dilaceradas e, ainda gritando, boiarem aos pedaços para dentro da
espiral em sua cabeça.
E lá no centro...
Sentiu as pernas enfraquecendo.
Antes que caísse começou a correr sem direção. Não saberia dizer por quanto
tempo procurou Ezequiel e Arnaldo, mas sabia que seu tempo estava acabando.
E então. Sem aviso. O
redemoinho feito com todo o sofrimento das Olívias de luz piscou numa visão,
tomando toda a realidade. Esse instante durou uma eternidade durante a qual ela
não existiu; era uma partícula consciente pairando no vazio. À sua frente,
sugando eternamente a linda e maligna energia azul, um buraco negro do tamanho
do universo emitindo ao mesmo tempo o coro de gritos e um repugnante som de
sucção.
E lá no centro, o
escoadouro. A essência pura da dor. O horror como indescritível singularidade.
O inferno.
O momento se foi num
piscar de olhos. O vórtice sumiu. Ao redor dela a matança de fantasmas progredia.
Ela sentia a loucura da
visão se alastrando por dentro dela. Infectando-a com um medo inconcebível.
Tinha medo de ver o buraco novamente; de ser engolida e se tornar una com o
sofrimento eterno.
A terrível ironia de
sentir isso foi que os gritos dentro de sua cabeça – mais altos que todo o caos
ao redor – voltaram a se intensificar, em ressonância com aquela coisa horrível
que a desejava tanto.
Ela agarrou sua cabeça
com as duas mãos e correu a esmo gritando. A sensação aumentou de uma vez e a
transportou de novo para a porta do inferno, mas muito mais perto e se
aproximando.
Quando aquele tempo sem
fim acabou, Olívia pisava em falso. Estava sobre o rio e não havia mais volta.
Enquanto caía, O ralo apareceu na superfície da água e a engoliu.
PARTE 4 < AQUI
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